O AEROBURGUER

Guilherme Mendes
4 min readDec 19, 2019

Ou: Como um Boeing definha no Cerrado

O esqueleto do PT-TAC, um Boeing 767–200 da extinta Transbrasil, em Taguatinga, no Distrito Federal.
O PT-TAC (Ou o que restou dele), em eterna exposição em Taguatinga-DF

Um terreno baldio em frente a uma loja de plantas não é o lugar onde se esperaria encontrar um Boeing 767–200. Mas é ali mesmo que um avião da extinta companhia Transbrasil aguarda seu último destino.

Desprovida de turbina e trem de pouso e sustentada no ar por doze estacas de aço, a aeronave parece congelada num eterno voo rasante. O impiedoso clima do Centro-Oeste embaçou as janelas, mas o arco-íris da logomarca da companhia ainda está visível, adornando a cauda, bastante avariada.

Faz mais ou menos seis anos que o veículo foi parar às margens da Avenida Elmo Serejo, nos arredores de Taguatinga, cidade-satélite de Brasília. O local fica a cerca de 25 km do aeroporto e a igual distância do Centro da capital federal.

Fundada em 1955, a Transbrasil encerrou as atividades em 2001. No ano seguinte, declarou falência. Só em 2013 o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) decidiu leiloar três aviões da companhia que estavam abandonados há mais de uma década em aeroportos do país, inclusive em Brasília. Os veículos foram colocados à venda inteiros ou aos pedaços, como sucata, a R$ 1,75 o quilo.

O empresário Almir Lopes tinha planos ambiciosos de fazer do terreno um complexo de lazer. Dono de lojas em um camelódromo em Taguatinga, Lopes reuniu um grupo de amigos investidores e foi atrás da principal atração do projeto: uma aeronave, que ele planejava transformar em hamburgueria, “até por causa do apelo ao público jovem”, como disse.

Um Boeing 767 novo não sai por menos de R$ 910 milhões. Mas o avião de matrícula PT-TAC, comprado pela Transbrasil em 1984, acabou arrematado por Lopes em 2015 por aproximadamente R$ 100 mil — ou cerca de R$ 1,25 para cada um dos 80.286 kg do veículo. Coube ao comprador arcar com as despesas de transporte da aeronave de 49 metros de comprimento e 15,8 metros de altura. No interior do aparelho, havia 300 m2 potencialmente disponíveis para a futura lanchonete.

Somente depois da segunda conversa foi que Lopes contou, num tom desanimado, por que o negócio não deu certo: “Começamos a fazer, mas os recursos não foram suficientes.” Ele pensa em retomar o projeto “quando entrar mais recursos”, mas a Administração Regional de Taguatinga disse que nenhum alvará foi expedido para operar um ponto comercial naquele lugar.

O esqueleto do PT-TAC, um Boeing 767–200 da extinta Transbrasil, em Taguatinga, no Distrito Federal.
O esqueleto do 767. Ao fundo, prédios em Taguatinga-DF.

Alguns pilotos amam os Boeings modelo 767, como o do terreno baldio. A principal razão do afeto é que essa aeronave permitia um controle humano muito maior do que é possível em modelos mais automatizados, tal como o A330, da europeia Airbus.

“O 767 foi um avião inovador em vários sentidos, seja pela nova tecnologia eletrônica de navegação e voo, como pela interatividade que tinha com o piloto”, disse Pedro Canabarro, que comandou voos com o mesmo modelo para a Varig. Aqueles foram tempos em que “a Boeing era a Boeing, e fazia aviões inquestionáveis”, afirmou o piloto, sobre a companhia multinacional norte-americana.

“É como se o 767 fosse uma Rural Willys [carro utilitário produzido entre 1946 e 1977], e o A330 fosse uma Pajero, com tração nas quatro rodas”, comparou o gaúcho Gustavo Heberle, que foi copiloto dos aviões da Transbrasil durante quase onze anos. Apenas a bordo dos 767 da empresa — que ele chama de “67” –, ele contabilizou 5,8 mil horas, de 1994 até 2001, voando pelo Brasil e o mundo. A Transbrasil, no auge de suas operações, tinha rotas que se estendiam até Nova York, Lisboa, Londres e Amsterdã.

“A Transbrasil era mais uma família do que uma empresa”, afirmou Eduardo Magno, que também comandou os 767 da empresa por 5,5 mil horas, no total. Até hoje ele se lembra de uma turbulência de quase quatro horas que enfrentou durante uma travessia do Atlântico.

Magno (que hoje é comandante na Latam, como Heberle) reside na capital federal há 41 anos e, um dia, deparou-se com o Boeing encalhado à beira da avenida. Ele contou que, ao ver a máquina, ficou surpreso e emocionado. Quando soube o que pretendiam fazer com ela, entusiasmou-se: “Olha só, rapaz! Se eu tivesse grana, faria o mesmo. Ou até mais: faria um hotel… Já pensou que bacana?”

Na avenida em Taguatinga, o Boeing 767–200 se deteriora a cada dia, lentamente. Nas asas e entradas de ar, os marimbondos instalaram casas enormes. As inscrições em inglês na fuselagem (com instruções ou posições das peças) estão parcialmente cobertas por pichações. Não há escadas de acesso para o interior do avião, e a cabine do piloto, por causa das janelas quebradas, enche de água no período das chuvas. Quando o vento sopra forte, ouve-se na distância o ranger das chapas de aço do aparelho.

Em uma manhã de outubro, alguns funcionários da loja de plantas capinavam o mato ao redor da aeronave, como fazem de tempos em tempos. Sem colocar de lado a enxada, um deles comentou: “Mais um dia, e está prontinho para voar.”

Matéria publicada originalmente na edição nº 159 da Revista Piauí, na seção “Esquinas”, sob o título “O Aerobúrguer”.

--

--