Nesta longa estrada da vida

Maria Helena Alvim
3 min readFeb 1, 2018

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O motorista desligou o telefone assim que entrei no carro. Depois me disse: era a esposa, uma baiana brava, que queria que ele voltasse pra casa pra resolver um problema com o carro. Eu disse: não é o carro, é o conforto de alguém que sabe resolver o problema. “Mas eu não posso sair daqui e ir até Santo André pra fazer um carro funcionar.” Dei razão. Mas disse que não era só isso. “Ela está chateada com alguma outra coisa.” Ele disse: “eu tinha a meta de fazer 350 reais ontem. E só consegui isso as 2 da manhã. Então resolvi dormir na casa da minha irmã na Paulista.” Eu disse: “não é o carro. É você. Ela está sentindo a sua falta.” Ficou em silêncio. “Se você chegar e fizer um agrado ela quebra.” Concordou comigo. Ela era exatamente assim. “Tem 26 anos que a gente está junto mas parece ainda namorado de escola.” Graças a Deus! “É que vocês devem ser muito diferentes. Dá briga isso mas também dá liga. E a vida não fica sem emoção.” Concordou. Mas também confessou sacrifícios: “antes dela eu era caminhoneiro. Adorava aquela vida.” Eu larguei porque ela sofria muito quando eu ficava muitos dias longe.” Eu disse: “e deve ter sido difícil largar o caminhão…” Ele disse: “se foi! Eu sonhava em ser caminhoneiro desde pequeno. Eu via aquele programa do caminhoneiro com o macaco e queria aquela vida.” Eu também via o programa do caminhoneiro com o macaco. E ainda sabia cantar a música da abertura inteira. Cantei. A plenos pulmões. Com a buzina final e tudo. Ele riu. Essa mesma. Eu disse: “a vida precisa de emoção, de aventura. Deve ser mesmo muito bom ser caminhoneiro.” “É! Mas também é difícil! Muito perrengue!” “Mas os perrengues viram histórias. E tudo o que a gente quer na vida é ter histórias pra contar”. Falei do meu trabalho, das aulas que eu dava, do que dizia aos meus alunos. “Se você vai daqui a Santos e nada acontece no caminho você não tem uma história. Mas se o pneu fura, começa a chover, você fica encharcado e ainda tem que pegar carona num caminhão com galinhas… Aí sim você tem uma história” “Bem isso!” E voltou a falar da baiana brava. Da segunda lua de mel na praia no ano passado. Deu tudo errado. O carro quebrou. Ela quase se afogou. Não deu pra voltar no dia combinado. E ela ainda perdeu um dia de trabalho. Ela disse: “era minha segunda lua de mel! Não era pra acontecer nada disso!” Mas aconteceu. E eles continuam juntos. Como há 26 anos. “Num relacionamento a gente pega um barco com outra pessoa e vai para alto-mar. O tempo ruim, as tempestades vão vir com toda certeza. Por isso você precisa ter a certeza de quem está no barco com você. Pra não ser jogado para fora do barco quando as coisa derem errado.” Ele riu. Bem isso. “Sabe, essa era uma viagem que eu não queria que acabasse…” Ele disse. “A da lua de mel?” Perguntei. Não. “Essa corrida com a senhora. Está tão boa essa conversa!” Eu ri e disse. “Foi só pra você lembrar porque está com a mesma baiana brava há 26 anos.” Rimos. “Faz um agrado a ela quando chegar em casa” eu disse antes de descer. “Vou fazer. Obrigado!” “Eu é que agradeço.” Coisa boa poder conversar. E ainda poder assoprar uma velha chama.

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