Arte na quarentena

Revista Desvario
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4 min readMay 18, 2020

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Olhando as coisas ao redor com mais calma e muito mais afeto

(ilustração: Tamiles Doralício)

Olá, meu nome é Tamiles Doralício.

Sou artista e trabalho com a criatividade, com a subjetividade do sentir, do tocar e do criar. Durante a quarentena, me vi tendo que pausar alguns projetos iniciados e deixar estudos de novas técnicas para outro momento. Precisava cuidar da minha saúde mental. Não conseguia ter fôlego para dar seguimento a esses projetos que exigiam de mim muita paciência e dedicação em cada processo.

A ansiedade em ver algo que está tomando tamanha proporção, além do bombardeio de informações que mostram essa realidade nada agradável, é muito triste. Claro, estou apenas dizendo o óbvio. Além do isolamento social em si, estamos sendo desafiados todos os dias a encontrar formas de lidar com ele prezando não somente pela nossa saúde física e mental, como também pela das nossas famílias.

Um dia de cada vez, uma hora de cada vez. De minuto a minuto, uma arte por vez.
Espera

Precisei ser sincera comigo mesma, observar quais eram minhas limitações e o que eu poderia fazer para me cuidar. Precisava continuar fazendo arte sem tornar esse processo uma atividade penosa ou complexa demais, pois apesar de ainda ter vontade de desenhar, não estava conseguindo me concentrar por muitas horas. Então, resolvi dar continuidade a uma série que tinha começado em janeiro desse ano, composta por pequenos desenhos de observação de algum objeto, rosto ou até de paisagens urbanas, feitos com caneta nanquim finalizadora. Quando iniciei essa série, tinha em mente algo despretensioso e divertido, além de ser uma forma de soltar o traço, desenhando com a caneta diretamente no papel, sem esboçar as marcações com lápis antes. Chamei carinhosamente essa série de Babys sketches, justamente por serem pequenos e simples, diferentemente de outros desenhos que costumo fazer com proporções maiores e processos mais demorados para serem finalizados.

Rotina. Fazendo, desfazendo, refazendo.

Para minha surpresa, percebi que desenhar esses Babys Sketches durante a quarentena acabou de fato salvando meus dias. Desenhar uma simples xícara num dia qualquer fez total diferença para mim e o processo era o mais simples possível. Não havia seleção prévia dos temas. Escolhia objetos que encontrava pela casa, um frame do meu filme favorito, materiais que estavam ao meu redor, alguma obra inspiradora, ou fotos que encontrava no celular e me faziam sentir saudades de um dia, lugar ou tempo específicos. Decidi compartilhar essa experiência porque percebi que esses sketches se tornaram o retrato que eu tinha sobre a ‘’arte na pandemia’’, e achei que seria interessante.

Sala de cinema Glauber Rocha, localizada no centro da cidade de Salvador-BA. Um dos meus lugares favoritos que sinto muita falta de frequentar.
Minha vó pegava essas florezinhas em uma rua aqui perto de casa. Ela gostava de pôr na mesa do fundo. A gente sempre almoçava e tomava café com elas ali, enfeitando a mesa. Hoje em dia, minha vó não está podendo sair, mas ela sente falta da rua, de andar e ficar de olho nos vizinhos, ‘’curicando’’. Sente falta de pegar flor e trazer pra colocar na mesa como sempre fazia.
Mesa de cabeceira de painho

Sinto que todo artista está sendo pressionado a criar algo durante essa quarentena, o tal do ‘’seja produtivo’’, influenciado pelas mídias sociais. Não quero generalizar, porém venho pensando muito sobre isso ultimamente. Particularmente, não sinto pressão para ser proativa ou produtiva em meio à pandemia, mas acredito que essa é uma questão delicada. Não digo que devam deixar projetos pessoais e profissionais de lado, claro que não. Porém, se tivermos a possibilidade, devemos zelar pela nossa saúde o máximo que pudermos. Almejar apenas o resultado que depende de uma cadeia de inúmeras ações, não observando o seu próprio tempo e bem estar, acaba se tornando algo extremamente penoso. Não somos um capital, nem uma máquina, ou ao menos não deveríamos funcionar como se fôssemos.

Theodore, do filme “Her”, dirigido por Spike Jonze, 2013.

Fazer arte em meio a uma pandemia está sendo algo peculiar e desafiador para mim, e imagino que para diversos outros artistas. Porém estamos aprendendo a nos adaptar, a olhar as coisas com mais gentileza e buscar maneiras de lidar com tudo da melhor forma possível. Conforta-me saber que a arte em si tem um poder transformador, um papel de afirmação existencial, e achar beleza nas pequenas coisas está sendo algo extremamente importante para mim nesse momento. Através desses pequenos sketches encontrei uma forma de tentar olhar as coisas ao meu redor com mais calma e com muito mais afeto.

E espero que você também encontre.

A série Baby Sketches ainda está rolando. Acompanhe aqui.

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