KAMANDI, O ÚLTIMO RAPAZ DA TERRA!

Claudio Basilio
sobrequadrinhos
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9 min readDec 2, 2020

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Jack Kirby é um gênio.

Ponto.

A sua vasta obra ajudou a definir a Cultura de Massa dos Séculos XX e XXI. Qualquer pessoa que tenha um conhecimento mínimo sobre a História da Nona Arte sabe disso. Porém, há um trabalho do “Rei dos Quadrinhos” que só Deus sabe porque não tem a reverência merecida por parte dos fãs e até mesmo por parte dos pesquisadores da Arte Sequencial. Sim, eu estou falando de KAMANDI, O ÚLTIMO RAPAZ DA TERRA (Kamandi, The Last Boy on Earth)! E, para saber sobre ele precisamos fazer uma jornada sentimental de volta ao início da década de setenta.

Capa de Kamandi #1, que faz alusão direta ao clímax de “O Planeta dos Macacos”.

Após um longo período trabalhando para a Marvel no ano da graça de 1970 Kirby se mudou de mala e cuia para a DC Comics. Em sua nova casa ele recebeu uma “carta-quase-branca” para escrever, desenhar e editar qualquer criação própria que surgisse da sua prodigiosa imaginação, e assim nasceram as séries New Gods (Novos Deuses), Mister Miracle (Senhor Milagre) e Forever People (Povo da Eternidade). Ah, e não podemos nos esquecer que além dessas novas revistas Kirby levou seu talento para Superman’s Pal Jimmy Olsen, um velho gibi protagonizado pelo enxerido fotógrafo juvenil do Planeta Diário.

Todas as revistas acima citadas eram conceitualmente ligadas entre si, e através delas Kirby pretendia contar uma única grande saga, que mostrava o conflito entre duas facções de divindades emergentes. Hoje a reunião de todas essas histórias é usualmente chamada de o “Quarto Mundo de Kirby”, mas a despeito de suas gigantescas qualidades artísticas a grande verdade é que… a ópera espacial-divina proposta pelo Rei dos Quadrinhos não agradou ao público e naufragou nas vendas!

Mapa que descreve parte do planeta Terra depois do Grande Desastre.

Por causa deste “fracasso” os títulos do “Quarto Mundo” foram cancelados e a agenda de Kirby foi liberada. Mas outras coisas aconteciam em paralelo no mundo da Cultura Pop, e uma delas atendia pelo nome de… O Planeta dos Macacos!

A série cinematográfica que mostrava um futuro distópico onde a Terra era comandada por símios falantes arrebatou o público no final dos anos sessenta e início dos setenta, e despertou o interesse de Carmine Infantino, então chefe editoral da DC Comics. De forma infrutífera Infantino tentou adquirir os direito de adaptar a “O Planeta…” para os quadrinhos, que acabaram indo parar na Marvel em 1974. E então, sem nenhuma outra opção Infantino pediu para Kirby criar uma nova série que seguisse de perto a premissa de “O Planeta…”.

Uma das principais características pessoais de Kirby era sua rígida ética profissional, ou seja: dificilmente o Rei recusava novos trabalhos ou desafios. Ora, Kirby ainda não tinha assistido “O Planeta..”, mas depois de rascunhar um pouquinho ali e matutar um “poucão” acolá ele se lembrou de “The Last Enemy!” (O Último Inimigo), uma curta história sci-fi que ele produziu para a Harvey Comics nos anos cinquenta que era muito próxima das ideias apresentadas no filme dos macacos. E provavelmente também vieram na cabeça do Rei os Cavaleiros de Wundagore, um grupo de animais antropomorfizados que ele criou em 1966 junto com Stan Lee para a série mensal do Poderoso Thor. Ah, é claro: Kirby também puxou das suas antigas memórias “Kamandi of the Caves”, um projeto pessoal de tiras em quadrinhos que nunca foi lançado e que seria protagonizado por um adolescente na Pré-História. Tudo isso foi reunido em um único pacote e… no final de 1972 chegou nas bancas de jornal americanas a primeira edição de Kamandi, The Last Boy on Earth, com uma capa onde o jovem protagonista aparecia ao lado de uma arruinada Estátua da Liberdade, uma alusão direta ao clímax de “O Planeta dos Macacos”.

Capa de Kamandi #3, onde em uma Las Vegas devastada o nosso herói encara um grupo de gorilas.

Originalmente Kirby cuidaria apenas do conceito e edição da nova série, mas com o cancelamento dos gibis do “Quarto Mundo” (lembram-se disso?) o Rei assumiu integralmente a responsabilidade sobre os roteiros e lápis de “Kamandi”. Mas… do se tratava mesmo este novo gibi?

Tudo começou em um período indeterminado do futuro, onde o planeta Terra foi devastado por um evento cataclísmico chamado “O Grande Desastre”. Não fica claro se o “O Grande Desastre” foi causado por uma mudança climática, uma hecatombe nuclear (apesar deste futuro apresentar elevados níveis de radiatividade ambiental) ou por uma pandemia (credo!), mas sabe-se que pouco antes dele ocorrer um cientista maluco desenvolveu uma substância que ao ser liberada no meio ambiente forçou a evolução de quase todos os animais, tornando-os bípedes, inteligentes e falantes. Por outro lado a maior parte da Humanidade regrediu para um estado de selvageria, emburrecimento e submissão em relação aos novos senhores do planeta. Entretanto, existiam enclaves onde os poucos humanos sencientes ainda resistiam e um deles era chamado de Comando D (Command D), local de nascimento do protagonista da nova série e inspiração para a sua alcunha.

Em Kamandi #8 o nosso herói encara uma perigosa gangue de leões antropomorfizados.

Criado pelo avô, Kamandi vivia completamente isolado do caos do mundo exterior, porém tudo ruiu quando o Comando D foi atacado. O avô de Kamandi morreu, e munido apenas com uma pistola, habilidades de combate e o conhecimento sobre o passado da Terra transmitidos pelo seu falecido parente o moleque caiu no mundo, em busca de locais onde existissem humanos como ele.

O Último Rapaz da Terra vai ao resgate de humanos bestializados em Kamandi #16.

Obviamente a jornada de Kamandi não foi desprovida de percalços. No meio do caminho ele trombou com humanos selvagens e reinos animais que não viam com bons olhos um homo sapiens adolescente saracoteando por aí. Porém, ainda assim ele encontrou aliados como Ben Boxer, um mutante de aparência humanoide que praticamente era um reator nuclear ambulante e Flor, uma humana selvagem que se tornou o seu interessante romântico. E até mesmo entre os animais inteligentes Kamandi fez amigos, como o bondoso Doutor Canus e o Príncipe Tuftan, o feroz herdeiro de um império constituído por tigres humanizados. E na série houve espaço também para alienígenas, que no caso foram representados por Pyra, uma criatura formada por pura energia que encontrou abrigo na Terra e na amizade com Kamandi.

Os aliados de Kamandi em sua longa jornada pela Terra depois do Grande Desastre.

Como qualquer quadrinho as aventuras de Kamandi produzidas por Kirby receberam a sua cota de críticas negativas. Muitos fãs e estudiosos se queixam dos diálogos rígidos e desprovidos de humor que o Rei elaborava, e outros simplesmente afirmam que as aventuras do Último Rapaz da Terra eram um mero decalque de “O Planeta dos Macacos”, o que certamente nunca foi o caso. Mas algo que ninguém pode negar é que dentro do seu melhor estilo Kirby injetou doses cavalares de energia, imaginação e urgência neste projeto, e o resultado final foi um tanto quanto surpreendente: as vendas de “Kamandi” foram muito, muito boas!

No prefácio de Kamandi — The Last Boy on Earth Omnibus Vol. 2 o produtor televisivo Bruce Timm explica que ao contrário do complexo e emaranhado “Quarto Mundo” a série do Kamandi é relativamente simples e acessível, especialmente para os leitores jovens e iniciantes, o que justifica em boa parte o seu sucesso. Mas tudo que é bom acaba um dia, né? Em 1976 Kirby voltou a trabalhar na Marvel e encerrou o seu trabalho com Kamandi na quadragésima edição da revista do herói. A partir daí quadrinistas como Gerry Conway, Dick Ayers, Jack C. Harris, Alfredo Alcala, Jim Starlin e outros se encarregaram de contar as aventuras do Último Rapaz da Terra, mas devido a uma série de problemas administrativos e mercadológicos (que hoje são conhecidos como “DC Implosion”) fez com que a revista do Kamandi fosse cancelada em 1977 após a quinquagésima nova edição. E então… o jovenzinho que viajava por uma Terra devastada e que era caçado por animais falantes meio que desapareceu do Universo DC! Mas porque diabos isso aconteceu?

Em Kamandi #25 o nosso herói encara um cardume de tubarões voadores! Jack Kirby não estava para brincadeira!

Voltemos novamente para Bruce Timm e suas explicações. Ele acredita que a despeito de sua proposta grandiloquente o “Quarto Mundo” era essencialmente uma conjunto de histórias de super-heróis passadas no presente, o que tornou fácil a sua assimilação dentro da continuidade da DC, tanto que hoje Darkseid (um dos protagonistas do “ Quarto Mundo”) é considerado o maior vilão da editora. Por outro lado a série de Kamandi era simples, entretanto o fato de ser ambientada em um futuro incerto dificultava a sua aproximação com o restante dos personagens da DC. Kirby até estabeleceu algumas conexões com a a continuidade da editora, ao fazer Kamandi se deparar com um grupo de gorilas adoradores do Superman em Kamandi #29, e o Último Rapaz da Terra se encontrou pessoalmente com o Homem de Aço e com o Batman respectivamente nas revistas “DC Comics Presents” e “The Brave and The Bold”. E, para completar o quadro os sucessores de Kirby na DC Comics definiram que o avô de Kamandi era OMAC (um herói sci-fi criado pelo Rei) e vincularam a origem do “Grande Desastre” aos eventos ocorridos nas aventuras do Cavaleiros Atômicos, um grupo aventureiros futuristas. Mas nada disso deu muito certo, e após a sua participação em “Crise das Infinitas Terras” Kamandi foi literalmente riscado da DC Comics para sempre.

Em Kamandi #29 o Último Rapaz da Terra se depara com uma relíquia do Século XX: o uniforme do Superman!

Para sempre? Mais ou menos…

Baseando-se livremente nos conceitos de Kirby em 1993 Tom Veitch e Frank Gomez produziram dentro do selo Elseworld (Túnel do Tempo) a minissérie em seis partes Kamandi at Earth’s End, que é inédita no Brasil. Nos anos seguintes Kamandi fazia uma participação especial aqui e outra acolá em aventuras que envolviam futuros ou realidades alternativas, e em 2009 Dave Gibbons e Ryan Sook produziram belíssimas paginas no formato de tira dominical para o projeto Wednesday Comics. E, por fim em comemoração ao centenário de de Jack Kirby em 2017 a DC Comics lançou “The Kamandi Challenge”, uma série fechada em doze partes onde os principais talentos da editora contaram juntos uma aventura do Último Rapaz da Terra.

Aqui no “patropi-abençoado-por-Deus” algumas das histórias da série original de Kirby foram lançadas de forma esparsa pela Ebal no finalzinho dos setenta e início dos oitenta e em 2018 a Panini publicou em dois encadernados simples “The Kamandi Challenge”, que ganhou o nome nacional de “O Desafio de Kamandi”. E em 2019 a mesma Panini soltou no Brasil a aventura do Último Rapaz da Terra de “Wednesday Comics” em uma edição homônima.

Capas nacionais de “O Desafio de Kamandi”, minissérie em homenagem ao centenário de Jack Kirby.

E aí fica aquela perguntinha marota no ar: o que o futuro reserva para Kamandi? Não sabemos. Sabemos que não são poucos os fãs que acreditam que o personagem funcionaria perfeitamente em uma adaptação televisiva ou cinematográfica, tanto que o próprio Bruce Timm chegou a manifestar informalmente para os seus pares da Warner Media o desejo de produzir uma animação estrelada pelo Último Rapaz da Terra. Mas quem sabe, né? Eu só sei que eu pagaria para assistir um filme do Kamandi!

E TENHO DITO!

Para saber mais:

Wikipedia — Kamandi

Comic Book Resources — Kamandi

Grand Comic Database — Série Original do Kamandi

Guia dos Quadrinhos — Aparições de Kamandi no Brasil

SiFy Wire — O Elenco dos Sonhos de Kamandi

P.S.: Graças a um amigo querido recentemente a minha coleção de quadrinhos foi reforçada com o encadernado Kamandi — The Last Boy on Earth Omnibus Vol. 2. Aceito de bom grado dicas para adquirir o primeiro volume desta série. E aceito também que me mandem esta edição de presente!

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Claudio Basilio
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Apenas um rapaz latino-americano que gosta de falar de Quadrinhos e Cultura Pop. E de outros assuntos também!