ana avila
20 min readJul 29, 2015

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Parto domiciliar: um direito para mulheres, uma afronta para o Cremers

Entrei em trabalho de parto à noite, enquanto comíamos uma pizza e senti cólicas que iam aumentando aos poucos. Senti que era o momento. Avisei meu companheiro e nos permitimos fazer mais nada a não ser esperar, sentindo com atenção e carinho os sinais que meu corpo dava. As coliquinhas foram se caracterizando dores e fui fazendo alguns exercícios de yoga, ou ia pra baixo do chuveiro deixar água morna escorrer pela lombar para aliviá-las. Chamamos minha doula, e ela foi fundamental para tranquilizar-nos e ajudar a entender os processos biológicos do corpo. Entender cada dor, sua duração, sua intensidade. A partir daí, ela soube a melhor hora de chamar a parteira para monitorar o bebê, escutando seus batimentos cardíacos e avaliando minha dilatação. Quando a parteira chegou, minha bolsa estourou! E horas depois, meu filho estava nas mãos trêmulas do pai, que o aparou dentro d’água (enchemos uma piscininha com agua morna, na mesma temperatura em que o bebê estava dentro do útero) e logo em seguida, em meu peito, cercado de respeito e amor, em nosso lar. Sem ocitocina sintética, sem drogas analgésicas, sem intervenções cirúrgicas. Sem tapa na bunda pra chorar, sem ar condicionado frio, sem luzes artificiais. Apenas nós, sua família.

O relato acima é de LM*, que teve seu primeiro filho em casa, em Porto Alegre, em setembro de 2014. O caso dela se assemelha aos de outras mulheres que, por diferentes razões, decidem dar à luz fora do ambiente hospitalar. Em comum, o desejo de estar cercada de pessoas importantes, num ambiente familiar e com a menor intervenção possível. No entanto, o parto domiciliar planejado só é recomendado para mulheres que apresentam baixo risco durante a gestação, podem estar a cerca de 15 minutos de um hospital em caso de emergência e contam com uma equipe para assisti-las em casa. Ou seja, algumas mulheres precisam de um hospital para parir, outras não.

Campanhas governamentais e a discussão crescente em torno do tema ainda não foram capazes de mitigar a resistência dentro dos consultórios. Recente resolução do Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers) afirma que os médicos que atenderem partos fora dos ambientes hospitalares, que resultem em complicações, podem ser punidos. De acordo com o documento, assinado por Fernando Weber Matos, vice-presidente do conselho, o Ministério Público poderá ser acionado para apurar a responsabilidade das pessoas que participem de parto domiciliar ou de partos em instituições de saúde realizados por não médicos.

Andrea Fontoura, doutora em Ciências do Movimento Humano, educadora perinatal e doula, define a resolução do Cremers como “um retrocesso”. “Acredito que, se existem profissionais desqualificados tomando a frente de procedimentos que não sabem fazer, devem ser punidos, mas vejo que isso deve ser muito bem avaliado. Desfechos negativos e inesperados acontecem em qualquer local, infelizmente”, diz ela.

A decisão do Cremers não é inédita. Em 2014, por exemplo, o Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro teve anulada pela Justiça Federal resolução de 2012, que proibia os partos domiciliares no Estado, prevendo punição para os médicos que atuassem em partos fora dos ambientes hospitalares, além de proibir o trabalho de doulas e parteiras nos hospitais.

Mônica Kerges Bueno, ginecologista e obstetra do Hospital da Universidade Federal de Santa Catarina, vai na contramão dos conselhos de Medicina do RS e do RJ. Ela considera indispensável o trabalho que a doula e a (o) enfermeira (o) obstétrica realizam. “Sou super a favor de doulas. Para mim, é muito difícil fazer o parto sem elas. Me liberam para ficar atenta à parte técnica”, relata. No entanto, a médica explica que em Florianópolis, onde atua, embora as doulas possam estar presentes no hospital para auxiliar a parturiente, existem limitações. A entrada delas é autorizada como acompanhantes, caso em que substituem, por exemplo, o pai. Ou seja, a mulher acaba obrigada a optar entre a doula e o (a) companheiro (a) ou familiar.

O obstetra Jorge Kuhn | Foto: Casa Moara

O obstetra Jorge Kuhn, de São Paulo, tem o mesmo ponto de vista. “A doula é a pessoa de confiança da mulher, que vai dar apoio a ela”. O médico garante que também não consegue mais trabalhar sem doula e enfermeira ou obstetriz. “Antes, era frequente a mulher ir para o hospital e, chegando lá, não havia início de trabalho de parto e ela voltava para casa, isso causava ansiedade. Com essas profissionais, não tem mais isso. Elas vão à casa da mulher e ajudam a saber o momento de ir para o hospital”, exemplifica.

Ana Cristina Duarte, obstetriz e coordenadora do Grupo de Apoio à Maternidade Ativa (GAMA), define a resistência à presença da doula como “puro preconceito”. “Em geral, essas pessoas são bastante ignorantes a respeito do papel e da possibilidade que essa profissional traz de melhorar a assistência. Muitos também têm medo, por achar que elas podem atrapalhar”, afirma.

Para Kuhn, é infrutífero proibir médicos de atenderem em casa “porque não é esse o modelo”, explica. Segundo ele, quem assiste os partos em casa é a obstetriz, e não o médico obstetra, e ela está legalmente amparada para atender o parto domiciliar.

O trabalho dos obstetras ao assistirem mulheres que optam pelo parto domiciliar, na maioria dos casos, se restringe a permanecer na retaguarda, ou seja, eles sequer costumam estar presentes na casa da mulher, onde a parteira, obstetriz ou enfermeira vai auxiliá-la no parto. O médico só irá se fazer presente se houver alguma complicação que exija uma transferência para o ambiente hospitalar durante o parto.

No entanto, o conselho de Medicina gaúcho orienta na resolução mencionada acima que os profissionais não prestem esse tipo de serviço: “os médicos do Corpo Clínico não são obrigados a realizar internação hospitalar em seu nome e não podem delegar ou assumir a responsabilidade por atos ou atribuições da profissão médica praticados por outros profissionais”. O anúncio resultou, inclusive, em uma ação protocolada por sindicatos de enfermeiros (as) no Ministério Público Estadual contra o Cremers.

Entre as razões que teriam levado à resolução do órgão gaúcho estaria o fato de “o parto domiciliar vir ganhando destaque nos meios de comunicação e em redes sociais, como também em publicações do próprio Ministério da Saúde”.

Procurado, o Ministério da Saúde defendeu que as gestantes têm liberdade de escolha sobre como e onde desejam que aconteça o seu parto e que a regulamentação da atividade dos profissionais cabe, de fato, aos conselhos regionais. O organismo admite, no entanto, que os partos domiciliares, realizados com a ajuda de parteiras ou outros profissionais, “são uma realidade” e que a recomendação do Ministério está muito mais voltada ao pré-natal, que deve ser realizado em uma unidade básica de saúde para que qualquer risco possa ser identificado e, em caso de necessidade, as mulheres sejam orientadas a optar pelo ambiente hospitalar.

Andrea lembra que a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Federação Internacional de Ginecologistas e Obstetras (FIGO) também respeitam o direito de escolha do local de parto pelas mulheres e, mais do que isso, “reconhecem a existência de benefícios consideráveis para as mulheres que querem e podem ter partos domiciliares, quando assistido por profissionais capazes e competentes”.

A própria OMS destaca que, além dos médicos, enfermeiras obstetras e parteiras são profissionais habilitados e capacitados para atender partos domiciliares e que mulheres que possuem gravidez de baixo risco podem escolher ter seus filhos em um local que lhes traga conforto e bem estar. O que existe é uma recomendação de planejamento para transferência a um sistema hospitalar em caso de emergência.

Cesárea e violência obstétrica: do que fogem as mulheres

Fabiane Garcia escolheu ter um parto assistido em casa, em setembro de 2014 | Foto: Juliana Pena

País recordista em cesáreas, o Brasil começa, lentamente, a tomar providências para mudar esta realidade, arraigada no sistema de saúde nas últimas décadas. Para o obstetra Jorge Kuhn, é o modelo que temos hoje, centrado no médico para atender um procedimento natural, que “leva a índices abusivos e criminosos de cesarianas, principalmente na rede de saúde suplementar e privada”.

Uma alternativa, mesmo para mulheres que dispõem de planos de saúde privados, tem sido o Sistema Único de Saúde (SUS). Ainda que a rede pública também faça mais cesarianas do que o ideal, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), esses índices são menores do que na comparação com partos realizados por médicos de planos de saúde ou privados.

“Epidemia de cesarianas”

Enquanto a OMS recomenda que no máximo 15% dos partos sejam cesáreas, esse percentual chega a 55,6% no Brasil, de acordo com dados do Ministério da Saúde (referentes a levantamento de 2012). Quando estimada apenas a rede de saúde suplementar (responsável pelo atendimento privado, realizado ou não por meio de um convênio com um plano de saúde), o índice sobe para 84%, chegando a 100% em algumas maternidades.

Levantamento de 2013 da Agência Nacional de Saúde Suplementar aponta operadoras de planos de saúde pelas quais todos os partos realizados naquele ano foram cesarianas. É o caso, por exemplo, da Associação dos Funcionários Públicos do Estado do Rio Grande do Sul (AFPERGS). Dos 21 partos realizados pelos profissionais credenciados à operadora naquele ano, 100% foram cesáreas.

A assessoria da AFPERGS sustenta que a opção pelas cesarianas “vem dos próprios pais”. Ainda de acordo com a associação, mesmo com a orientação do Ministério da Saúde, nada estaria sendo feito para incentivar os partos normais. “Hoje, na ansiedade de querer conhecer o filho e não ficar na expectativa de horário, os pais acabam pedindo para fazer cesárea”, diz a AFPERGS.

Na Unimed da Região da Campanha, todos os 82 partos realizados em 2013 também foram cesáreas. A operadora do plano de saúde garante que os pacientes são orientados pelos médicos a respeito da necessidade de reduzir o número de procedimentos do tipo no país, mas que não há um levantamento atualizado indicando se houve alguma queda neste percentual desde 2013.

É curioso notar que, apesar dos dados sobre os partos no Brasil, no início da gravidez, 66% das mulheres dizem preferir o parto normal, segundo a pesquisa Nascer no Brasil, coordenada pela Fiocruz e divulgada em maio de 2014.

O ministro da Saúde, Arthur Chioro | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Recentemente, o ministro da Saúde, Arthur Chioro, definiu como “epidemia de cesarianas” o que acontece no Brasil. Diante do índice que vai na contramão de países como a Grã-Bretanha, onde o Instituto Nacional para Saúde e Excelência em Atendimento defende que mulheres sem complicações durante a gestação deem à luz fora dos hospitais, o Ministério da Saúde começa a tomar providências. Em março foram anunciados os 23 hospitais privados e cinco maternidades da rede pública integrantes de um projeto piloto, chamado Parto Adequado, de incentivo ao parto normal.
Único hospital do Rio Grande do Sul a integrar o projeto, o Moinhos de Vento apresenta taxas de cesariana muito acima das indicadas pelas organizações internacionais. O levantamento mais atual fornecido por Marcos Wengrover Rosa, chefe do Serviço Médico de Ginecologia e Obstetrícia da instituição, indica que foram realizados no hospital, em um ano, 4.100 cesarianas e apenas 740 partos normais.

Mas, apesar de afirmar que o hospital vai se adequar às recomendações do Ministério da Saúde, realizando uma série de ações, como reforma de área física, reestruturação das equipes assistenciais, modificação na ambientação, treinamento da equipe e ações de informação a todos os públicos, o chefe do Serviço Médico de Ginecologia e Obstetrícia do Moinhos de Vento considera o percentual de cesarianas de 15% recomendado pela OMS “irreal e sem base alguma de referência”. Ele toma como exemplo os Estados Unidos, onde a taxa nacional é quase o dobro disto. “Calcula-se que a média nacional seria bem adequada se ficasse entre 29% a 35% considerando as indicações médicas da atualidade e tipo de assistência prestada. No norte da Europa temos taxas menores por questões culturais e assistenciais”. E completa: “As altas taxas de cesariana são o resultado de uma conjunção de fatores: social (conceitos baseados em falsas crenças), modelo assistencial favorável à cesariana, imediatismo, conveniência e pela baixa morbidade associada a cesariana em grandes centros, entre outros fatores”.

Rosa está correto quando diz que nos EUA o percentual de cesáreas está muito acima dos 15% — estima-se que um em cada três partos no país sejam realizados por meio de cirurgia -, mas organizações norte-americanas vem trabalhado para modificar isso. Em fevereiro de 2014, o American College of Obstetricians and Gynecologists (Colégio Americano de Obstetrícia e Ginecologia, ou ACOG, na sigla em inglês) e a Society for Maternal-Fetal Medicine (Sociedade de Medicina Materno-Fetal, ou SMFM) divulgaram em conjunto uma série de novas recomendações. Os órgãos pediram aos médicos para esperar mais pelo nascimento do bebê durante o parto normal e para que recorram a outras alternativas para ajudar no parto antes de optar pela cesárea.

Para o obstetra Jorge Kuhn, é difícil dizer se o parto domiciliar vai influenciar as estatísticas atuais no Brasil, mas é um caminho. “A mulher tem o direito de ser bem informada. Assim como planeja ter ou não a gravidez, deve poder planejar onde e como ganhar o bebê”, diz ele.
No dia 6 de julho entrou em vigor outra medida da Agência Nacional de Saúde Suplementar para tentar controlar o número de cesáreas no país. A primeira determinação é que o médico informe à paciente, em até 15 dias após ser solicitado, os índices de cesarianas do obstetra que a está atendendo, do plano de saúde e do hospital para que, melhor informada, ela possa decidir o que fazer. O não cumprimento da medida pelas operadoras resultará em multa de até R$ 25 mil. A outra determinação é o uso do partograma, uma espécie de documento com registros dos procedimentos adotados no trabalho de parto. A medida pretende evitar que os médicos realizem procedimentos desnecessários. Em caso de auditoria que comprove o contrário, a operadora pode não pagar o profissional.

Menos violência, mais humanização

Uma lista de temores é compartilhada pelas mulheres que evitam os hospitais. “Temia violência e todas as intervenções desnecessárias tanto em mim quanto no meu bebê. Episiotomia, cesárea desnecessária, indução, uso de ocitocina, soro, remédios, anestesia, exame de toque, aspiração na bebê, aplicação de nitrato de prata nela, banho ao nascer, vacinas desnecessárias. Temia tudo”, relembra Fabiane Garcia, que deu à luz seu primeiro filho em setembro de 2014, em casa.

Pesquisa da Fundação Abramo aponta que uma em cada quatro mulheres sofre violência obstétrica, e muitas sequer sabem disso. Enquadram-se no conceito desde um procedimento desconhecido pela paciente até o abuso de medicalização, capaz de provocar perda da autonomia na mulher durante o parto. Buscando dar mais visibilidade a estes abusos cometidos contra as mulheres, a Associação Artemis, uma organização que luta pela erradicação de todas as formas de violência contra a mulher, desenvolveu um mapa da violência obstétrica no Brasil. Nele, mulheres de todos os cantos do país dão seus relatos sobre o que enfrentaram, onde e quem foram seus algozes. Numa tabela que procura categorizar o tipo de violência sofrida lidera “procedimentos desnecessários na mãe”.

As descrições são permeadas de sofrimento: “Eu fazia força no momento errado, fora da contração… porque tinha um menino ao meu lado dizendo pra eu não parar de fazer força… pedia pra eu fazer força e eu na hora nem percebia que eu não estava no meio da contração… Então começaram a pular na minha barriga, pulavam com tudo… e minha filha nasceu… Em meio a esse cenário todo… E pasmem, tiraram ela de mim e já a levaram pra outra sala… eu não vi o rosto da minha filha, não senti o cheiro dela… não ouvia ela chorar… Fiquei em desespero… foi aí que meu marido tirou fotos dela e me mostrou… Olha só, conheci minha filha por foto!”, diz uma das vítimas, de São Paulo. “Eu já pensava que morrer não seria algo tão terrível, eu pensava que se meu coração parasse seria um presente dos deuses, eu não raciocinava mais, só queria que aquilo acabasse, já me sentia rouca, se eu tivesse com o que, talvez eu mesma tivesse feito meu coração parar, não lembrava mais nem mesmo do sonho da minha filha que ia nascer, eu chamava as enfermeiras que não me atendiam, eu chamava pelo meu marido, que estava isolado na recepção”, narra outra mulher, de Santa Catarina.

Na tentativa de reduzir a violência contra as mulheres, o Ministério da Saúde passou a autorizar o parto humanizado no SUS. As orientações são, por exemplo, para que o recém-nascido seja colocado no abdômen ou no tórax da mãe de acordo com a vontade dela, o corte do cordão umbilical só seja feito após ele parar de pulsar e o bebê seja amamentado na primeira hora de vida.

Para Dr. Ivo Lopes parto domiciliar no SUS é ‘um avanço’ | Foto: Hospital Sofia Feldman

Em janeiro deste ano, um hospital de Belo Horizonte que opera exclusivamente pelo SUS completou o primeiro ano atendendo partos domiciliares. O Sofia Feldman é referência nacional quando se fala em parto domiciliar e humanizado. Em 2014, por exemplo, foram realizados 11.272 partos no local. Destes, 24,9% foram cesáreas. Em 3,6% dos casos foi realizada episiotomia, 1,3% dos recém-nascidos tiveram Apgar menor que 7 no 5º minuto de vida e em 86,7% dos casos houve interação mãe-bebê ainda na sala de parto.

Quando o Sofia Feldman comemorou a data, ouviu mães que deram à luz em casa, assistidas pelos profissionais do hospital, e a equipe que trabalha no local. Entre eles, Ivo Lopes, médico e diretor administrativo do Sofia, que afirmou em seus discurso: “(…) Eu acho que o parto domiciliar é um retorno necessário para mostrar que a mulher é quem decide sobre sua vida. Nós, profissionais da saúde, interferimos mais do que devíamos e isso, eu acredito, não está certo. Queria agradecer a vocês e espero que aprovem esta instituição, que tem a honra de fazer isso pelo SUS”.

A obstetra Mônica Kerges Bueno resume: “o conceito de humanização engloba protagonismo da mulher, evidencias, segurança para mãe e bebê e clareza na comunicação”. Tal conceito esclarece porque uma cesárea não pode ser considerada humanizada. Na cesárea, a mulher não é mais protagonista. Ela se submete a uma cirurgia, realizada por outra pessoa. O que pode acontecer, isso sim, é uma prática mais respeitosa, em que a mãe pode ver o bebê nascendo, o campo cirúrgico pode ser baixado, o bebê pode ficar ali, em contato com ela, ir para o colo mamar, ser acompanhada pelo companheiro (a) e pela doula. “O importante é entender o seu semelhante que está ali fragilizado”, diz Mônica.

Jorge Kuhn lembra que o parto domiciliar era regra no mundo até a década de 1930. “A mulher estava cercada pela família, o conhecimento era transmitido de geração para geração, as pessoas não tinham medo. A partir da transferência para o ambiente hospitalar, se proibiu presenças, as mulheres perderam informação, se construiu mitos de processo doloroso, de necessidade de intervenção. O desconhecimento, a ignorância têm levado a tantas cesarianas no Brasil”, diz ele, para quem é extremamente importante discutir o tema e debelar mitos e crenças que cercam o parto atualmente.

Para quem ouve falar aqui e acolá, mas não sabe bem de que se trata o tal “parto humanizado”, ele caracteriza-se pela menor intervenção possível no corpo da mulher. Ela é a protagonista no trabalho de dar à luz o bebê que gerou por meses. Neste tipo de procedimento são evitadas práticas como a episiotomia (corte no períneo) e a injeção de ocitocina (hormônio sintético), utilizada para aumentar o número de contrações do útero e, consequentemente, a dor.

Um artigo publicado em 2009 no American Journal of Obstetrics & Gynecology (Jornal Americano de Obstetrícia e Ginecologia), aponta a ocitocina como a droga mais comumente associada a complicações perinatais que poderiam ser prevenidas. Isso porque não é possível saber com precisão seus efeitos no útero da mulher, que variam caso a caso. Ainda assim, é utilizada indiscriminadamente nos hospitais a fim de acelerar o trabalho de parto.

“Eu teria meu filho em um hospital, se eu me sentisse segura”

“Hoje, eu não conseguiria parir num hospital”, diz Ingrid Panitz | Foto: Vívian Scaggiante

Algumas mulheres que fizeram a escolha pelo parto domiciliar contaram suas experiências nesta reportagem. Em comum, a felicidade com a decisão, evidente em frases como “eu teria mais cinco filhos assim”.

Entre as razões que costumam se apontadas por quem prefere dar à luz em um hospital está o justo desejo de evitar o sofrimento e acelerar o trabalho de parto. No entanto, a questão que outras mulheres levantam é: o trabalho de parto precisa realmente ser acelerado? Talvez muitas de nós respondamos que sim, principalmente pelo temor de passar horas sentindo dor. No entanto, mães e profissionais ouvidas têm a mesma opinião: o período costuma ser longo, e isso é absolutamente natural e não precisa ser sinônimo de sofrimento. Aline Amaral ficou 21 horas em trabalho de parto. Ingrid Panitz, 28. Ambas sem medicação e, na maior parte do tempo, realizando suas atividades de rotina. “Estava cuidando da minha filha mais velha, fazendo as atividades normais da casa”, lembra Aline. “O que se criou por trás de um parto foi uma plateia toda, não tem ambiente para a mulher gritar. Hoje, eu não conseguiria parir num hospital. Levei 28 horas em trabalho de parto, tive meu tempo porque estava em casa”, afirma Ingrid. “Descobri que a maioria esmagadora de médicos, enfermeiros, assistentes, anestesistas metem medo na gestante com falsas indicações de cesárea para apressar a história toda”, diz Fabiane Garcia, que também teve seu bebê em casa.

LM deu à luz seu primeiro filho em setembro de 2014 em um parto domiciliar. Orientada pelo ginecologista que a atendia na época a usar um remédio para “fortificar” o útero e evitar relações sexuais por 12 semanas, ela achou que alguma coisa não fazia sentido. “Na hora em que saí do consultório, pensei: ‘remédios? mas se meu útero não estivesse ‘forte’ eu não estaria grávida… e como assim posso introduzir meu dedo no colo do útero todos os dias, — e ele, médico também, tão cedo já fazendo exame de toque — mas não posso ter relações sexuais?”, relembra.

Como muitas outras mulheres que engravidam e não se conformam com as orientações ouvidas de profissionais da saúde, LM passou a pesquisar sobre gestação e chegou à humanização. Depois de ter certeza que sua gravidez era de baixo risco, decidiu que seu parto seria em casa. “Sou mulher. Meu corpo tem o potencial de gestar e, portanto, de parir”, afirma.

Na opinião de LM, existe um “bug” no sistema de saúde, uma preocupação exagerada com o que pode vir a acontecer fora dos hospitais, mas menos preocupação do que deveria com o que está acontecendo dentro. “Eu teria meu filho em um hospital tranquilamente, se eu tivesse certeza, se eu me sentisse segura, se eu conhecesse lá profissionais que respeitam as decisões da mãe a a natureza do ser humano. Isso é humanizar”, define.

Em junho de 2014, Aline Amaral trouxe ao mundo sua segunda filha em um parto domiciliar. A decisão foi muito bem planejada depois de uma experiência difícil na primeira gestação. Em 2012, ela deu à luz pela primeira vez, em um hospital de Porto Alegre. “Na época, eu achava que era a opção mais segura e morria de medo de parto normal. Domiciliar então, parecia o auge da loucura”, lembra. O bebê estava sentado e a médica de Aline na época, que a atendia por um plano de saúde, a convenceu de que a cesariana era a melhor opção. “Não era necessário, mas eu só descobri depois”, afirma.

Correu tudo bem com a criança, mas Aline teve um princípio de hemorragia ainda no hospital. “Depois, fomos para casa, minha barriga se abriu, literalmente. Fiquei dois meses tendo que fazer curativos, com a cicatriz aberta. Comecei a repensar se a cesárea tinha sido mesmo a melhor opção”, diz. Desde então, ela, que é mestre em Fisiologia Humana, começou a estudar a fisiologia do parto mais a fundo, leu livros e artigos científicos e afirma ter começado a entender que o parto natural é um evento do final da gravidez e que pode ser tão natural quanto a gravidez em si.

Protagonismo feminino

Outro ponto em comum entre as mulheres que optam pelo parto domiciliar é a busca por retomar o protagonismo. Aline acredita que o fato de os médicos estarem se sentindo cada vez menos importantes no parto é justamente uma das razões de resistência da categoria ao parto domiciliar. “A maioria das pessoas acha que sou louca, mas quando pergunto qual o risco que elas imaginam ter, não sabem dizer. As pessoas têm medo de algo, mas não sabem de quê”, afirma.

A resolução do Cremers reforça o medo ao qual se refere Aline. Está escrito no documento que não há evidências científicas de que um parto domiciliar seja seguro. “Há sim, muitas, como por exemplo, um estudo que acompanhou mais de 500 mil partos (entre hospitalares e domiciliares), isso mesmo, 500 mil partos, e observou muitos benefícios no parto domiciliar”, afirma a doula Andrea Fontoura. O estudo ao qual ela se refere foi publicado no British Journal of Obstetrics and Gynecology (2009) e analisou a mortalidade perinatal em 529.688 partos domiciliares ou hospitalares planejados em gestantes de baixo risco e não constatou diferenças significativas entre partos domiciliares e hospitalares planejados em relação ao risco de morte ou admissão em unidade de cuidados intensivos.

A obstetra Mônica Kerges Bueno cita uma análise feita pela colega Melania Amorim a partir de três estudos, o primeiro, holandês, citado por Andrea, outro de 2011, do National Health System (NHS) no Reino Unido, com mais de 60.000 partos, e ainda um terceiro, também holandês, feito com mais de 679.000 partos. Neste último estudo, evidenciou-se uma mortalidade perinatal de 0,15% em partos domiciliares planejados contra 0,18% em partos hospitalares planejados em parturientes de baixo risco. “O fato é que, infelizmente, mesmo com a melhor assistência, 15–18 em cada 10.000 RN (recém-nascidos) irão morrer, quer nasçam em casa quer no hospital, mesmo em países desenvolvidos como a Holanda, não havendo diferença significativa nessa mortalidade de acordo com o local de parto”, concluiu na análise.

Vale ressaltar o que diz a obstetriz Ana Cristina Duarte a respeito da existência de muitas pesquisas sobre partos domiciliares fora do país, mas nenhuma que possa ser adotada como exemplo no Brasil. “As pesquisas no Brasil falam de parto domiciliar acidental, sem assistência, o que obviamente complica bastante os resultados”.

Alguns fatores apontados pelos obstetras jogam luz sobre as razões que levam tantos médicos a realizarem cesarianas hoje no Brasil, ainda que a necessidade seja questionável. De acordo com Jorge Kuhn, nos programas de residência médica, quando optam pela ginecologia e obstetrícia, os profissionais atendem em hospitais de alto risco, onde acabam fazendo muitas cesarianas e se sentindo confortáveis em realizar essa operação. “Costumo dizer que, após 50 cesáreas, o médico está pronto para fazer a cirurgia sem supervisão. No parto normal isso não acontece, porque cada mulher é diferente”, explica.

Mônica também tenta entender os colegas e suas escolhas. “Passamos décadas centralizando o poder do parto nas mãos do médico. Hoje, toda a culpa recai sobre eles e os afugenta dessas novas posturas”, reflete.

PL do deputado federal Jean Wyllys (Psol-RJ) tenta regulamentar a questão | Foto: Caroline Ferraz/Sul21

Kuhn garante que parto que o deixa mais satisfeito é aquele que apenas assiste. “É um evento natural da mulher. Se for possível não fazer nenhum tipo de intervenção, melhor”. Na opinião do obstetra, a ciência da obstetrícia veio para ajudar em casos de desvio da naturalidade, mas não deve ser empregada sem necessidade, para apressar o processo sem razão ou porque o profissional está acostumado a agir assim.

Um Projeto de Lei de autoria do deputado federal Jean Wyllys (Psol-RJ) tenta regulamentar a questão, instituindo regras para a realização do parto no Brasil. O texto orienta os profissionais a darem prioridade à assistência humanizada e enumera procedimentos a serem seguidos, como interferência mínima da equipe, preferência por métodos não invasivos e utilização de medicamentos e cirurgias somente quando estritamente necessário. O PL também prevê a criação de comissões de monitoramento dos índices de cesarianas e de boas práticas obstétricas (CMICBPO), que terão a função de controlar a violência obstétrica no país.

Resta saber se um Congresso tão conservador quanto o nosso dará passo tão decisivo em defesa da mulher e de seus direitos e, em caso de aprovação do projeto, se será colocado em prática de modo que consiga debelar mitos, levar conhecimento e poder às mulheres para fazerem suas escolhas e confiança e boa-vontade aos médicos para entenderem e respeitarem a presença de outros profissionais e os direitos das gestantes. “Espero que a palavra ‘humanização’ não vire o novo ‘gourmet’ da história toda. Humanização é coisa séria. Saúde pública é coisa séria. E maternidade, então, a mais séria de todas”, diz LM.

*LM pediu para não ter o nome divulgado por razões pessoais

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