O forninho da desinformação

O baque é real, mas dá pra dar um jeito

Erick Lopes de Almeida

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Tive que escolher entre uns cinco memes para começar este texto, mas nada me representa melhor que a menina Giovana, porque olha… tem sido eita atrás de eita.

Tentei lembrar os eitas mais recentes que poderiam estar presentes num texto sobre os efeitos da desinformação na vida das pessoas, como quando tivemos que argumentar para convencer que trabalho infantil não é algo bom e também de quando foi necessário retomar a importância das vacinas para a saúde. Mas aí lembrei de algumas situações em que eu mesmo pude presenciar o estrago causado pela falta de uma educação para o consumo midiático, que fomente uma visão crítica dos conteúdos consumidos.

Dia de chuva, eu de uber. Entro e o motorista puxa um papo sobre o tempo e sobre estar fora de casa nessa chuva, o que é muito frequente. Eu já sorrio, porque digo que estava trabalhando e meio que já sei onde a conversa acaba. “Com livros didáticos”, respondo após o “trabalha com quê?” dele. E, pra minha surpresa, ganho uma aula sobre o kit-gay, produzido pelo PT. Abismado com a veemência com que aquele senhor me contava essa história, perguntei de onde ele havia tirado tantos absurdos e até quis ver o vídeo. Uma colagem tosca de uma introdução de reportagem da Record com algumas falas do então deputado Jair Bolsonaro gritando asneiras, as quais ia tentando replicar as que eu dava conta em tempo real ou com uma breve pausa no vídeo. Mas eram muitas e o trajeto do trabalho até minha casa não seria suficiente para todas elas. E eu também não aguentaria até o fim daquele vídeo, pra ser bem sincero. Quando perguntei se ele não achou aquilo tudo muito esquisito e se não viu nada de diferente no jornal, ele me surpreendeu mais uma vez. “Não vejo TV tem muito tempo! Só YouTube. Mais prático.”

Coincidentemente, na semana em que preparo um texto sobre desinformação, esbarro em leituras incríveis. Uma delas foi esta reportagem da Piauí, que traz informações interessantíssimas, como a de que “os usuários [do YouTube] atualmente publicam em média 500 horas de conteúdo novo por minuto — seriam necessários 82 anos para que uma pessoa assistisse a todos os vídeos postados num único dia”, sendo o Brasil o terceiro país que mais consome vídeos na plataforma. Seria um sonho que fossem todos conteúdos de qualidade, mas qualquer um que já teve uma insônia sabe do buraco negro que é o sistema de recomendação de vídeos do YouTube.

Em agosto de 2019, uma reportagem do mesmo jornal [New York Times] afirmou que o YouTube havia contribuído para a radicalização dos brasileiros e ajudado a criar o ambiente político que elegeu Jair Bolsonaro. Com base em dados gerados por pesquisadores da Universidade Harvard e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o relato concluiu que o algoritmo de recomendação do YouTube no Brasil parecia estar conduzindo usuários sistematicamente para canais da extrema direita e de teorias conspiratórias.

Bolsonaro é o primeiro presidente youtuber do Brasil. Mesmo que a plataforma de vídeos não fosse o carro-chefe de suas redes sociais, seu canal já contava com mais de 2 milhões de inscritos quando ele foi eleito — hoje tem 2,63 milhões. Vêm desde os tempos de campanha as lives de retórica inflamada e estética descuidada que se tornaram uma marca registrada da comunicação de seu governo.

A reportagem entrevistou o segundo deputado estadual mais votado de São Paulo, Arthur do Val — o youtuber Mamãe Falei –, que teve 478 mil votos e foi projetado na política após encontrar a receita para o engajamento da ultra-direita: o sarcasmo tunado por uma suposta superioridade ao debater assuntos polêmicos. Ele não vê nenhum problema em afirmar que se informa sobre política, história, ciência e outros temas pelo YouTube, com seus longos vídeos de 10 minutos, ou em assumir que possui dificuldade para retenção de conteúdo escrito, porque aí tem “que parar e ficar pensando”.

Autônomo, curioso, não podemos negar a boa intenção do menino, mas o resultado é uma bagunça. Quando não somos educados a consumir mídia, não possuímos repertório para uma leitura crítica daquilo que lemos, assistimos ou ouvimos. E aí ideias estapafúrdias se encontram todas na cracolândia virtual que se tornou o ambiente das redes sociais, principalmente o YouTube, onde canais como o do Mamãe Falei e do presidente youtuber do Brasil possuem mais de 2,6 milhões de seguidores cada.

“Vídeo de treta dá mais views, você fica entusiasmado e entra num ciclo vicioso: mais views, mais likes, mais briga, mais polarização”, disse Val. “Esse discurso é privilegiado pelo algoritmo”.

Apenas no fim do ano passado é que o resultado de determinadas buscas no YouTube passou a incluir painéis informativos alimentados por fontes de boa reputação, como agências de checagem e órgãos da imprensa, mas estamos bem atrasados. A agenda de desvalorização da imprensa foi pesadíssima e está aliada à desvalorização de todo conhecimento científico como estratégia política e financeira. Lembremos da mais recente pérola, a que o novo presidente da Capes defende o criacionismo.

Bolsonaro já mandou avisar que jornalistas são raça em extinção e a gente sabe que esse tipo de discurso alimenta ainda mais a histeria coletiva de que os jornais tradicionais só produzem fake news. Pois bem, no finzinho do ano passado, um conhecido de um amigo, desses que a gente esbarra por dez minutos num rolê aleatório e depois nunca mais vê na vida — eu, pelo menos, não sentirei falta — disse não assistir mais ao Jornal Nacional porque eles só passavam notícias ruins. Aliás, nada da “Globolixo”, igual um cunhado de um outro amigo aí. “Não dão espaço para o que é bom do governo”.

E essa culpabilização da imprensa por aquilo que ela ousa investigar é recorrente, né? Afastei-me dos textões no Facebook e das brigas com desconhecidos, mas confesso que às vezes preciso fechar o app para conter o impulso de comentar. E tem dessas vezes em que comentário sai mais rápido, como quando acabei me envolvendo no post de um antigo colega de classe da minha amada escola pública, em que ele criticava a imprensa: “abutre”, que foca apenas nos podres do governo e não ajuda a construir um país melhor.

E aí a galera vai restringindo suas fontes de informação, alienando a si e a seus filhos e colaborando com a injustiça que tanto têm vontade de combater. Trabalhadores reproduzem os discursos meritocráticos contra os serviços públicos e contra sua própria saúde física e mental e a gente logo visualiza algumas das famosas distopias da literatura, além de lembrar daquela clássica propaganda da Folha de S.Paulo.

E esse ano tem eleição municipal. O inferno é aqui, bem no quintal. Vai ter aprendiz do presidente na disputa da prefeitura de Londrina e imagino que o resto do estado esteja na mesma situação, já que estamos no sul. Será o momento das deep fakes, da manipulação por algorítimos, do falseamento das fontes.

Um prelúdio um tanto desesperador para os próximos tempos, mas um desafio dos grandes para os profissionais de comunicação. Somos necessários e responsáveis pela diminuição do ruído e pela apuração criteriosa, pela alfabetização para um consumo de conteúdo consciente. É o momento de não apenas explicar e conversar sobre o óbvio, mas também de falar sobre o próprio trabalho do jornalismo. Recomendo forte outra leitura com a qual esbarrei essa semana: este artigo do Instituto Palavra Aberta.

Ah, o presidente também acha que os livros didáticos estão com muita escrita e já deu sinais que irá atuar no setor. Por que $erá?

E é por esse monte de coisa absurda que também sugiro aquela tática super inovadora de conversar com as pessoas. No ônibus, no mercado, na fila do banco, na feira, longe dessa brigueira toda da internet. Pro cara que ironiza a greve dos professores, pra desconhecida que lamenta um aumento de preço, pra recepcionista que comemora a aprovação da reforma da previdência. Nessas lindas oportunidades de conectar as coisas na vida real, sem o filtro da ignorância imediatista que as redes sociais dão às pessoas. Nada grandioso. Uma provocação, a apresentação de um fato, a indicação de um livro ou de um filme.Tem muita gente apenas reproduzindo suas respostas automáticas que dariam no churrasco de domingo, sem que estejam absolutamente seguras daquilo que acham que pensam ou necessariamente mal intencionadas. Estão alheias.

Tenho ampla experiência em explicar piada para amigo e tenho notado que a tradução é questão fundamental nos nossos tempos. E a paciência, claro. Eu mesmo confesso estar bem agressivo com idiotices, mas tô tentando filtrar. Tô guardando o sarcasmo e a hostilidade pros burguês safado, por exemplo. O obscurantismo segue avançando e se fazendo de normal no cotidiano, mas precisa ser combatido diariamente. Uma conexão não esperada que faça esse ser humano olhar para fora da própria realidade. Ou mesmo para dentro dela.

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Erick Lopes de Almeida

Editor de conteúdos educacionais e temporariamente Professor Assistente nos cursos de Jornalismo e Relações Públicas da Universidade Estadual de Londrina (UEL)