Métrica
por Silvia Argenta
Como a maioria das garotas de dez anos, tenho uma energia danada. Danço, viro estrelinha, escalo o muro. Também subo escada, desço escada ou escorrego pelo corrimão. Qualquer coisa é motivo para eu me agitar. Não paro quieta e estou sempre conversando com meus botões. Minha mãe se irrita e não para de alertar: “vai se machucar”, “toma cuidado”, “presta atenção”. Quero dividir meus botões, mas o que recebo é só aviso e tchau. Ela somente olha para mim de novo quando faço algo que a deixe desconfortável. Na tentativa de parar essa montanha russa de atenção, ela, como a adulta da relação, decide me ensinar tarefas em que preciso me acalmar um pouco para me concentrar. “Não tem mais boneca que dê conta de tanta infância”, ela diz. Comecei com o bordado, depois fui pra receita de bolo, agora estou na fase de lavar louça. Tenho interesse de início, mas logo desanimo porque percebo que ela não liga para o que estou fazendo. E não vou quebrar um copo de propósito para ela olhar para mim, né? Ela só tem olhos para a máquina de costura. Trabalha o dia todo debruçada naquilo, se esquece de cuidar da casa e as tarefas acabam sobrando para eu fazer. Ultimamente quando fala comigo é na base do grito. “Ai guria, de novo nesse corrimão”. “Menina, se atenta no que está fazendo”. “Filha, chega de agito. Vai varrer a cozinha”. Eu obedeço sem reclamar. Abaixo a cabeça e tento acompanhar de canto de olho se ela está me vendo. Normalmente ela perde o interesse em três segundos. Esquece que eu existo. Depois de um tempo consigo me aproximar dela de novo. De vez em quando, ajudo a dobrar os tecidos e a guardar as linhas, mas ela aparenta não gostar. Suspira alto e diz que coloco as coisas no lugar errado. “Isso se chama sabotagem!”. O ateliê é um espaço só dela, mas insisto em ficar por ali porque senão fico sozinha andando pela casa, já que ela não me deixa ir pra rua. Cansada das mesmas brincadeiras no muro e na escada, tenho percebido que estou me arriscando a ficar mais perto dela. Vou para a estante e mexo nos retalhos. Ela me mostra que primeiro aperta o nó para depois fazer o laço e usar como acabamento dos vestidos. “É como o tempo que afrouxa e aperta com a mesma intensidade, mas você nunca sabe se é dia frouxo ou de aperto”. Não entendo o que ela quer dizer com isso. Ela volta a se sentar. Enquanto ela aciona a máquina de costura com o pé, coloco as mãos em cima da mesa e observo a agulha. Não sinto medo do sobe-e-desce veloz nem da ponta cravar minha pele. Aproximo minha mão direita da máquina e penso no sangue escorrendo e manchando a mesa de madeira. Tensiono a ponta dos dedos até as unhas ficarem roxas. Ela não percebe. Encosto a lateral da minha mão no cós da calça que está sendo alinhada pela agulha. Mais um centímetro para o lado e talvez assim ela se levante dali e olhe para mim e cuide de mim e limpe a mesa e me coloque para dormir me desejando que fique bem. Aproximo a mão cada vez mais. Consigo colocar um pedacinho da palma em cima da calça, quase chegando na agulha, quando ela me empurra e grita: “Não seja demente! Não criei filha para ser retardada!”. Não respondo nada. Não consigo responder. Ela nunca tinha me chamado desse jeito. Fico de pé, paralisada, só olhando como ela consegue ser tão linda mesmo brava comigo. Já sei que não adianta eu chorar ou tentar abraçar porque ela não se sensibiliza. Resolvo ir para a cozinha lavar a louça. Mais tarde, quando volto para o ateliê, ela está concentrada de novo na calça. Tenho vontade de abraçar e dar um beijo, mas ela não ia gostar. Dessa vez, fico mais longe dela. Sento na cadeira do lado da porta, espiando cada movimento que ela faz. Observo os detalhes do quartinho tomado por fiapos de tecidos e estantes com aviamentos, e só então descubro a fita métrica. Pergunto a ela para que serve. Já mais calma, minha mãe me mostra os números e me ensina a calcular o tamanho dos cortes das roupas. Me apaixono pela fita colorida. Gosto tanto que logo resolvo brincar com ela. Meço parede, meço cama, meço sofá. Enrolo e desenrolo. Enrolo e desenrolo. Me distraio tanto que às vezes até me esqueço da mãe. Só me lembro dela quando ela grita pedindo pela fita porque precisa medir alguma peça de roupa. Vou correndo e fico acompanhando as medições até a fita não ter mais serventia e eu poder brincar com ela de novo. Num dia, no auge da energia de sobra, pego a fita e a uso como corda para pular. Pulo saltitando, pulo com os dois pés, pulo com um pé. Faço todo tipo de variação. Pulo tanto que dou um passo em falso e piso bem em cima da fita, que se rasga no meio. Com um pedaço em cada mão, imagino a reação da minha mãe. Decido esconder a fita despedaçada dando um nó para que as pontas não se percam. Só vou contar o que aconteceu quando ela souber medir as palavras.