O mistério da Cão Maior

Tempos Crônicos
5 min readDec 8, 2023

--

por Silvia Argenta

Imagem: https://starwalk.space/.../canis-major-constellation-guide

São três horas da madrugada, e Thales nem conseguiu fechar os olhos ainda. Está com dor de cabeça e taquicardia, mas prefere não tomar remédio. Todas as noites de quarta têm sido sofríveis. Só de saber que na manhã do dia seguinte precisa ir para a aula, seu corpo se abala. A cada semana, aparece um problema diferente. Apesar de ser jovem, já teve falta de ar e formigamento nos braços. Faz quase um ano que tem essa rotina de angústia. Mesmo se arrastando por não ter descansado direito, sempre vai às aulas, afinal precisa do diploma. Mas nessa noite o coração está palpitando e a cabeça explodindo de tanto pensar no Mistério.

Em vez de ficar deitado mais um pouco para tentar dormir, se levanta, vai até o quintal da casa e percebe o tempo limpo. A noite fria de Florianópolis faz as brumas ficarem estacionadas nos cumes das montanhas, podendo ver a lua crescente e as estrelas. Analisa o céu e logo identifica a constelação de Cão Maior. Sirius é a mais brilhante de todas. Esfrega as palmas das mãos para se aquecer, aciona o isqueiro e acende o cigarro. Alivia um pouco a sensação de sufocamento, mas a dor de cabeça não para. Ele então volta para o quarto, veste a camisa de flanela e por cima a jaqueta de poliéster. Faz um coque nos dreads para que caibam na touca de lã. Se olha no espelho para ajeitar as pontas que insistem em ficar de fora. Na garagem, calça as botas de cano alto, pega a bicicleta e sai sozinho em direção à universidade.

Em pouco mais de dez minutos, chega ao laboratório. Usando um arame, consegue abrir a frágil fechadura da porta de madeira caindo aos pedaços. A mistura de formol com sangue faz com que esboce uma ânsia de vômito. Põe as mãos na boca e consegue se controlar. Lá estão os corpos de animais que ficam disponíveis para os alunos de biologia fazerem experimentos. Ao entrar, Thales aperta o interruptor e acende as duas lâmpadas fluorescentes, que insistem em ficar piscando. De cara encontra a mesa de inox onde são feitos os estudos com os bichos. Atrás, cinco estantes de metal estão cheias de pequenos vidros com pedaços de seres que um dia já viveram. A luz falhada do teto parece dar mais destaque ao líquido dentro dos recipientes, deixando o ambiente mais amarelo e mais tétrico do que durante o dia. No fundo da sala, Mistério chora, sentindo o cheiro de seu futuro próximo. Pobre cão. Está preso, encolhido num dos cantos da gaiola com grades de aço onde mal cabe direito.

Na manhã seguinte está programada uma aula prática. O plano do professor é que Mistério receba uma anestesia. Assim, os alunos poderão abrir o seu peito e observar como o batimento cardíaco do cachorro se altera a cada vez que uma substância diferente é injetada. Depois disso, o bicho sofrerá eutanásia. Usam esse termo para não chocar, mas o cão será morto mesmo. De morte matada. Já é uma rotina do laboratório esse tipo de atividade. Curioso que só observam as reações dos animais, não dos humanos. O pequeno vira-lata que vivia solto pelo campus foi pego pelo técnico do laboratório sem nenhuma chance de defesa. Coisa de gente sem coração.

Thales se senta no chão com as pernas cruzadas em frente à gaiola e encara os olhos pretos lacrimejantes do animal. As patas estão curvadas para trás, os pelos cor de caramelo, arrepiados e as orelhas, abaixadas. Imaginou que o encontraria furioso, mostrando os dentes e rosnando de raiva. Ao contrário, Mistério solta pequenos grunhidos que imploram atenção. O coração de Thales fica pequenininho. Ele passa os dedos da mão direita pela barba rala e repete várias vezes o gesto quando chega no queixo. Não aguenta a ideia de se despedir do bicho. Evita a todo custo a hipótese de assistir à aula de manhã. Para ele, nada justifica o sacrifício de um animal. Nos laboratórios, estudantes enfiam suas mãos com luvas nas entranhas vivas de um ser inocente. Afastam os órgãos, cortam pedaços, sentem as palpitações do coração. Depois descartam a cobaia como se sua vida de nada valesse. Tudo muito cruel, atroz, medieval.

Thales fica alguns minutos olhando o cachorro e decide não se despedir. Vai esperar amanhecer. Quem sabe se argumentar antes da aula, o professor muda de ideia. Daí ele usa vídeos de cirurgias antigas para mostrar aos alunos como funciona o organismo de um animal. Se fizer isso, o estudante pode até adotar o Mistério. É isso. Sabe que é uma tarefa difícil, mas vai tentar.

Pega o celular e envia mensagens para alguns colegas próximos que podem ajudá-lo a convencer o professor. Pede que eles vão ao laboratório assim que acordarem. Ainda é madrugada, mas um deles responde rápido com uma lembrança nada animadora. O professor está prestes a se aposentar e tudo que ele quer é sossego. Já houve discussões sobre isso na sala e ele defende que sempre deu aula assim e não tem motivos para mudar. Os alunos vão se desgastar com mil justificativas e o professor vai manter o roteiro: anestesiar, abrir e matar o Mistério. Resumindo, um cabeça dura. Coração seco. O peito nem deve arder.

As lâmpadas continuam piscando e incomodam Thales porque acentuam a dor de cabeça. Decide sair dali antes que o professor chegue. Pouco importa se vai conseguir o diploma ou se vai atrapalhar o sossego pré-aposentadoria do professor ou ainda se vai ser fichado pela polícia por terrorismo ecológico. Puxa a lingueta para o lado e abre a fechadura da gaiola. O barulho estridente da dobradiça da porta assusta o cachorro, que logo entende o que está acontecendo. Os olhos do vira-lata param de lacrimejar. De longe, escuta o apito do vigia da universidade. Sem hesitar, Thales e Mistério saem correndo do laboratório. As unhas do cachorro arranham o chão de um jeito todo fora de compasso. O estudante sobe na bicicleta. Eles se encontram na rua vazia da madrugada e continuam a fugir numa velocidade incrível. O vento joga a touca de Thales para longe e as orelhas de Mistério para trás. A aventura solitária agora é constelada. Sirius está mais brilhante do que nunca, e os corações dos dois quase saem pelas bocas sorridentes.

--

--