Olhos de guaraná

Tempos Crônicos
5 min readAug 18, 2023

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por Silvia Argenta

Imagem: foto de Gustavo Giacon

Naquele dia, Kênia acordou com os olhos de guaraná. Tinham o centro preto rodeado de uma película branca e estavam arregalados, característica incomum por conta das pálpebras que lhes davam um formato alongado em condições normais. Além dos olhos estarem diferentes, a avó, dona Keiko, também percebeu, através da tela mosquiteira, a pele lisa coberta de suor e as pernas flexionadas em direção à barriga. Pela primeira vez em cinquenta anos, o prognóstico que a matriarca fazia, de que a garota ia se recuperar, não se concretizou.

Desde que recebeu uma ferroada de uma abelha no olho direito, dona Keiko, na época com quinze anos, passou a desenvolver dons premonitórios. Ele não tinha mais o aspecto gelatinoso e parecia uma tela cheia de pequenos furos, quase como o amplificador de uma caixa de som. Na hora, pensou que tinha ficado cega, mas o que aconteceu foi bem o contrário. Depois que o sangramento passou, ela começou a ver formas geométricas invisíveis aos olhos humanos normais. Elas montavam figuras que se ajustavam e indicavam a parte do corpo com algum problema de saúde. Levou um tempo para perceber que, feito o diagnóstico, bastava olhar para o centro de qualquer flor que ela lhe revelava o que fazer para melhorar as condições de saúde de quem estivesse pensando. Depois de tomar as providências, mirava os olhos da pessoa doente, que deviam estar sem alterações para confirmar que o problema tinha sido solucionado. Já o olho esquerdo de dona Keiko, não picado pela abelha, servia como balizador para que pudesse fazer as atividades triviais de qualquer humano.

A primeira vez que usou plenamente seus poderes foi com o pai. Ele estava com os olhos de jacaré, com um fiapo de pupila de aspecto opaco. Com o olho direito ativado, as figuras geométricas mostraram à curandeira uma queda de energia no abdômen, provocada pelo baço. Ela então foi ao quintal e mirou o centro azul de uma tulipa, que lhe indicou as compressas que devia fazer para reduzir o inchaço. Em poucos dias, as dores passaram e os olhos do pai voltaram ao normal.

Depois disso, tornaram-se frequentes os pedidos para diagnosticar e tratar os vizinhos. Ela passou a se interessar por botânica e montou um imenso jardim, que era até difícil de entrar de tanta planta cultivada, aproveitando cada pedacinho de terra. Naquela época, ter acesso a médicos era difícil e, mesmo muito tempo depois com a instalação de um posto de saúde próximo a sua casa, a ideia de fazer uma consulta tradicional não era bem quista para a maioria dos moradores do bairro. Assim, ela continuou sendo referência para resolver as questões de saúde por muitas décadas. A quantidade de acertos era absoluta. Em todos os casos a mulher baixa e de cabelos lisos curtos conseguia identificar precisamente o problema e resolvê-lo sem a ajuda de medicamentos. Tudo era feito de forma natural com o uso das plantas que tinha em casa.

Nas situações em que o paciente não conseguiria sobreviver por conta de sua grave condição, ela sugeria a utilização de alguma técnica que deixava o doente em paz. Foi o que aconteceu com seu Mário, dono da quitanda. Os olhos dele estavam coloridos, no prisma do arco-íris. Pela experiência dela, isso indicava que a pessoa já estava atravessando uma espécie de portal para outro mundo. Baseada no relato das queixas, ela escolhia alguma flor aleatoriamente, que lhe revelava o que fazer para o paciente morrer dormindo, sem traumas.

A neta Kênia morava na mesma casa da avó e era acostumada com as visitas frequentes. Para ela, havia uma regra principal: não podia mexer nas plantas nem matar os insetos que viviam no jardim. Nada disso era mais sagrado. Nem mesmo a abelha que picou a avó décadas atrás foi morta. É claro que, como toda criança, Kênia testava seus limites. Não havia prazer maior do que se sentar numa pedra, escolher um besouro qualquer e puxar a tripa do bichinho com a unha, que acabava morto na sua mão instantaneamente. Ela então jogava o inseto na grama, afastava a franja da frente do rosto sorridente e voltava a procurar mais um animal desprevenido. O cheiro floral do jardim era tomado pelo odor de tripa de bicho. Ela nunca foi pega.

Já tinha uma semana que a neta apresentava febre e enjoos. O início do mal estar coincidiu com a floração da cerejeira. Os olhos eram de coruja, com a parte preta bem arredondada, um indicativo de inflamação. A avó logo identificou que se tratava de algum problema no apêndice e aproveitou a breve vida de apenas sete dias da planta rosa para que a guiasse. Mirou no centro da flor, que recomendou o uso de emplastros naturais para relaxar o órgão. Passados alguns dias, a curandeira notou que o tratamento não funcionou, pois a neta continuava a se queixar de dor. A avó então retornou à mesma flor e pediu um novo aconselhamento. A orientação foi a mesma feita anteriormente com os emplastros e a dona Keiko manteve o tratamento.

No dia seguinte, quando percebeu que os olhos de coruja passaram a ser de guaraná, uma transformação que a curandeira nunca havia visto, imaginou que talvez a tela mosquiteira da cama da neta estivesse atrapalhando o diagnóstico. Ela a retirou e continuou fazendo as compressas, mas nada adiantava. O cheiro das ervas dos emplastros nem se mantinha no ambiente, indicando que não estavam funcionando. A febre fazia a neta delirar e nem mesmo as compressas na testa ajudavam a reduzir a quentura do corpo. O calor do cerrado fez com que os mosquitos começassem a pousar na pele de Kênia, o que a deixou irritada. Desnorteada, dona Keiko matou algumas moscas com as mãos para que parassem de incomodar.

A avó não entendia o que estava acontecendo. A menina já tinha tido meningite alguns anos antes e se curado com seu tratamento natural. Num ato de desespero, dona Keiko pediu ao filho, pai de Kênia, que levasse a neta ao posto de saúde, pois já não sabia mais o que fazer. Ele a levou de carro e o médico prontamente a atendeu. O problema é que não havia mais solução. A inflamação já tinha tomado conta do apêndice todo num quadro irreversível. Alguns minutos depois, Kênia faleceu.

Ainda sem saber o que tinha acontecido com a neta, dona Keiko foi até o jardim e mirou dentro de um crisântemo branco, concentrando os pensamentos nela própria como paciente, coisa que nunca havia feito. A flor contou que a curandeira tinha a visão aguçada como a dos cinco olhos das abelhas, mas foi traída pelas cores da flor da cerejeira, rosa por fora com o miolo vermelho. O que dona Keiko não sabia é que as abelhas não conseguem ver a cor vermelha, o que prejudicou na identificação do tratamento da menina. Os olhos de guaraná da neta estavam querendo dizer isso a ela. Eles se transformaram em arco-íris sem que a avó pudesse decifrá-los. A vida de Kênia foi breve como a floração da cerejeira.

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