A POLÍTICA EXTERIOR BRASILEIRA NOS SÉCULOS XX E XXI: A ATUAÇÃO ENTRE PARADIGMAS E A BUSCA PELA AUTONOMIA
O presente texto visa a explicitar, compreender e analisar os argumentos desenvolvidos nas obras “História da Política Exterior do Brasil”, de Amado Cervo e Clodoaldo Bueno; “Estados e Mercados: os Estados Unidos e o sistema multilateral de comércio”, de Sebastião Velasco e Cruz, “Repensando as Relações Internacionais”, de Fred Halliday e, por fim, “A política Externa Brasileira: a busca da autonomia, de Sarney a Lula”, de Tullo Vigevani e Gabriel Cepaluni. Neste aspecto, este texto visa a realizar um voo panorâmico acerca da história da política externa brasileira, destacando momentos-chaves para a compreensão e buscando compreender se há padrões de inserção internacional e em quais destes padrões pode-se compreender um maior avanço na posição brasileira no Sistema Internacional.
Primeiramente, é necessário realizar um choque de conceitos acerca dos padrões de autonomia, remetendo ao livro de Gabriel Cepaluni e Tullo Vigevani, e de paradigma de inserção de Cervo e Bueno. Para Cepaluni e Vigevani (2016), a autonomia deve ser compreendida como a capacidade de um país de desenvolver uma política externa livre de constrangimentos e possui como pólos a dependência total e a completa autonomia. Além disso, segundo os autores, pode-se compreender três tipos distintos de autonomia na política externa brasileira: a autonomia pela distância, a autonomia pela participação e a autonomia pela diversificação.
A autonomia pela distância, segundo os autores (CEPALUNI; VIGEVANI, 2016), é caracterizada por um forte sentimento nacionalista, culminando em um desenvolvimento econômica autárquico e com predomínio das relações Sul-Sul em oposição à participação nas grandes agendas internacionais. Já a autonomia pela participação estabelece que há um predomínio no envolvimento das grandes agendas internacionais e na aceitação dos regimes internacionais de modo a tentar influenciá-los. Por fim, a autonomia pela diversificação se baseia na capacidade de ampliação do número de parceiros sem causar nenhum tipo de ruptura com os países centrais.
Em paralelo a isso, é necessária a compreensão acerca dos paradigmas de inserção internacional dos quais se utilizam Cervo e Bueno (2015). O primeiro deles é o Estado desenvolvimentista que se trata de um Estado que reforça o caráter nacionalista e autônomo da política externa e atua visando a superação de dependências econômicas estruturais. O segundo é o Estado normal que se define a partir de três características: subserviência às coerções do centro hegemônico, destruição do núcleo produtivo da economia, transferindo este papel produtivo ao exterior e, por fim, regresso da sociedade à condição de infância social, ou seja, uma sociedade que não é capaz de desenvolver tecnologias a serem incorporadas pela produção, tornando-se mero montador de equipamentos tecnológicos. O último dos paradigmas é o de Estado logístico, ou seja, aquele que promove na sociedade responsabilidades empreendedoras e atua na promoção desta. É através deste paradigma que há uma facilitação de acesso do empresariado nacional aos mercados do Norte.
Um aspecto importante a ser mencionado é como se torna explícita a atuação internacional dos Estados desenvolvimentista e logístico para a promoção e mobilização dos recursos internos. Como aponta Halliday (2007), os Estados competem no Sistema Internacional para consolidar sua posição no cenário doméstico. Com isso, no Estado desenvolvimentista a política externa nacionalista apresenta-se como ferramenta estatal para a promoção do desenvolvimento nacional. No caso do Estado logístico, é com auxílio de uma diplomacia propositiva e assertiva que o empresariado nacional pode buscar, com maior facilidade, o acesso a mercados estrangeiros. Já no caso do Estado normal, não se vislumbra essa correlação pois, como explicitado, há uma deterioração do núcleo produtivo nacional e, com isso, a posição do Estado no cenário doméstico torna-se mais fragilizada, com uma menor atuação.
Diante do explicitado, percebe-se relativa convergência para a análise de alguns períodos da política exterior brasileira. A escolha destes períodos decorre da compreensão de que nestes momentos as características conceituais citadas apresentam-se de maneira mais destacável. O primeiro deles tem origem ainda no governo Vargas e na busca pelo desenvolvimento nacional e se conclui, entre oscilações ao longo do tempo, no fim do regime militar. Este período pode ser compreendido a partir da autonomia pela distância e do paradigma do Estado desenvolvimentista, pois a atuação brasileira visava, nas relações com o Sul, o arranjo de poder de modo a assegurar o caráter nacionalista da política externa, visando à promoção do desenvolvimento nacional em detrimento da subserviência aos países do Norte.
A política externa brasileira no período varguista e a conhecida diplomacia da equidistância pragmática (1935–1941) são exemplos de atuação do paradigma do Estado desenvolvimentista e da autonomia pela distância. Dado o contexto mundial de ascensão do nazifascismo e aumento das tensões pré-II Guerra Mundial, a indefinição brasileira diante do cenário que se colocava foi de distanciamanto e de primazia dos ganhos na relação com os Estados Unidos e com a Alemanha nazista. Neste aspecto, como resultante da capacidade de barganha nacional, pode-se perceber um aumento das exportações brasileiras para a Alemanha entre os períodos de 1932 a 1938, partindo de 9,0% para 25% das exportações totais. Quanto aos Estados Unidos, dentre os ganhos, percebe-se a venda exclusiva de minerais estratégicos por parte dos brasileiros, além do financiamento americano da construção da Usina Siderúrgica de Volta Redonda. Como conclusão das negociações, o que se viu foi o apoio brasileiro através do Nordeste brasileiro como ponto geopolítico importante da defesa norte-americana (CERVO; BUENO, 2015).
Entre aproximações e distanciamentos da condução da política externa é no período entre 1961 e 1964 que se estabelece novamente uma atuação internacional a partir das mesmas chaves de autonomia e atuação estatal. Dentre algumas características, o caráter nacional-desenvolvimentista retorna ao foco das manifestações públicas do presidente Jânio Quadros e na condução da Política Externa Independente, além do princípio da autodeterminação dos povos e de não intervenção. Como exemplo, pode-se observar a recusa brasileira em declarar apoio aos Estados Unidos em uma ação armada contra o governo cubano, estando de acordo com os princípios apresentados (CERVO; BUENO, 2015).
O último período da caracterização da autonomia pela distância e Estado desenvolvimentista é o período do regime militar (1967–1985), com exceção do governo Castello Braco. Segundo os autores (2015), foi no governo Costa e Silva que a nacionalização da segurança começou a pautar alguns aspectos da política externa. O Brasil foi contrário ao Tratado de Não Proliferação Nuclear proposto pelos Estados Unidos e União Soviética sobre os países em desenvolvimento. Ciente da posição no Sistema Internacional, a objeção brasileira defendia que o tratado não fosse uma barreira para o desenvolvimento de tecnologia nuclear e que as todas as potências nucleares também adotassem medidas a favor do desarmamento.
A partir disso, Cervo e Bueno (2015) argumentam que quatro momentos foram decisivos para a nacionalização da segurança: i) o aproveitamento da oportunidade da entrada brasileira no mercado de material bélico, a partir da produção de armas portáteis, munições e veículos de combate; ii) a transferência de tecnologia nuclear da Alemanha Ocidental para o Brasil após o Acordo Nuclear de 27 de junho de 1975; iii) a denúncia do Acordo Militar com os Estados Unidos, rompendo com uma dependência do armamento brasileiro e, por fim, iv) o estabelecimento de um programa nuclear paralelo a partir de pesquisas do Exército, da Marinha e da Aeronáutica.
Partindo dos aspectos históricos aqui expostos, pode-se compreender uma preponderância do paradigma realista no regime militar. A diplomacia brasileira do período conduziu-se a partir da posição brasileira na ordem internacional e como o país podia conjugar sua posição geopolítica com as visões de poder perante o cenário internacional.
O período da redemocratização até os governos petistas pode ser compreendido a partir da autonomia pela participação e pelo paradigma do Estado normal. Neste sentido, é possível avaliar o governo Collor como um exemplo, pois nesse período o Brasil passou a aderir a alguns regimes internacionais, como o do desarmamento nuclear, ponto de interesse americano para a diminuição do poder relativo brasileiro. Apesar da assinatura do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares acontecer apenas no governo Fernando Henrique, é no governo Collor que se estabelece a criação da ABACC (Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares), visando à estabilidade da região sul-americana (CEPALUNI; VIGEVANI, 2016).
Já na concepção da autonomia pela diversificação e de Estado Logístico, o Brasil após 2003 passou a figurar como um importante ator internacional, em concordância com os preceitos de não-rompimento com eixos tradicionais da diplomacia brasileira. Na Cooperação Sul-Sul destaca-se a construção de iniciativas de contestação à ordem global, como os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e o IBAS (Índia, Brasil e África do Sul).
Neste aspecto, é possível compreender a atuação dos BRICS na OMC. Brasil e Índia têm uma tradição na defesa dos interesses dos países em desenvolvimento (CRUZ, 2017). Exemplo histórico foi a resistência desses dois países em pautar a negociação normativa acerca da comercialização de serviços, ainda na Rodada Uruguai. Com isso, dado o contexto de Guerra Global ao Terror e, posteriormente, de crise dos subprimes em 2008, os países em desenvolvimento foram capazes de atuar de maneira mais propositiva na construção da ordem comercial internacional. Exemplo disso, pode ser compreendida a liderança do Brasil e Índia na contestação acerca de alguns aspectos das negociações de bens industriais e agrícolas no pós conferência de Hong Kong (CRUZ, 2017). Os ministros dos dois países denunciaram junto à mídia a intransigência dos EUA e União Européia, culminando no fracasso da negociação.
Desta forma, pode-se compreender os distintos paradigmas e princípios norteadores que guiaram a condução da política externa brasileira ao longo da história. A condução da inserção internacional do Brasil correlaciona-se com dois aspectos distintos: a perspectiva do Estadista acerca do desenvolvimento desta política pública e a margem de manobra que o país detém perante o Sistema Internacional. Por vezes, entende-se que a melhor estratégia é o alinhamento aos países de capitalismo desenvolvido, no entanto, o que se percebe com o voo histórico construído foi que o país conquistou maiores ganhos em momentos em que atuou com maior assertividade e defesa dos interesses nacionais.