Fascismo e Bolsonaro: um projeto de Brasil
É certo dizer que o Brasil vive hoje um governo fascista? Não, não é, no entanto, isso não torna Bolsonaro um amigo das minorias e da democracia. O Brasil pós-eleições 2018 não é um governo fascista pois, em alguma medida, as instituições, bem como as manifestações populares, ainda conseguem refrear danos que estamos sofrendo. Nesse aspecto, acredito que, antes de mais nada, é necessário reconstruirmos o conceito de fascismo para compreender a política que está sendo desenvolvida.
O filósofo italiano, Umberto Eco, elaborou 14 características típicas de um governo fascista. Segundo ele, é cabível compreender governos distintos como fascistas, decorrente da possibilidade de que diferentes países escolham características distintas dentre tal tipologia.
Nesse aspecto, tem-se de maneira resumida tais 14 pontos: i) Culto à tradição; ii) Recusa da modernidade; iii) Culto pela ação; iv) Não há margem para a oposição; v) a busca pelo consenso através do medo pela diferença; vi) Cresce diante da frustração social; vii) O nacionalismo e a recusa ao estrangeiro; viii) O ódio pela figura da riqueza inimiga; ix) O pacifismo enquanto conluio com o inimigo; x) Desprezo pelos fracos; xi) A figura do herói enquanto vida e luta; xii) Relação direta com o machismo; xiii) O povo como entidade monolítica; xiv) construção de uma comunicação simples, com um léxico pobre e uma sintaxe elementar.
O culto à tradição no atual governo brasileiro demonstra-se, nas mais diversas falas do presidente, bem como em uma das suas bases no Congresso: o conservadorismo neopentecostal. Nesse aspecto, vale inclusive destacar o ataque à ideias contrárias a isso, como o direito dos grupos LGBTQs+. Tais ataques têm vínculo maior com a ala bolsonarista radical do seu eleitorado.
O segundo aspecto é evidente diante da crise atual da COVID-19. A recusa na condução das políticas públicas para o embasamento científico é cada vez mais latente, seja pela defesa irracional da cloroquina, seja por outras aberrações que vêm se apresentando diante da atual conjuntura.
Além disso, esse movimento da extrema direita passou a ganhar um maior espaço no contexto nacional a partir da frustração gerada nos governos petistas. É inegável o aumento do acesso a produtos por parte da população e a ampliação da classe média, no entanto, a política econômica adotada a partir do boom das commodities não tornou possível a sustentação, a longo prazo, dessa mudança social. Isso, somado aos processos de corrupção que abarcaram a classe política, ampliou tal sentimento, ainda que muitos desses processos apresentaram fraudes legais.
Para além disso, a ascensão de Bolsonaro e companhia, principalmente ao longo da campanha eleitoral, lidou com um linguajar pouco elaborado e bastante sensacionalista, atacando os candidatos de oposição e sem propor nada em seu programa de governo. Vale retomar que enquanto outros candidatos disponibilizam documentos detalhados acercas dos mais variados temas que se apresentam na condução da política nacional o plano de governo disponibilizado pelo PSL continha frases rápidas, de efeito e de criação de um inimigo, um alvo a ser combatido.
Vale ainda destacar a criação da figura do “mito” enquanto salvador da pátria e detentor da indicação divina para guiar a nação diante dos inimigos, como aborda Eco na XI característica. Nesse aspecto, a tentativa de assassinato a Jair Bolsonaro, sendo ela verídica ou não, corrobora para a construção dessa ideia, de um salvador que dá a vida pelo país.
O aspecto que compreendemos como mais complexo e que também pode realmente retirar essa mentalidade que assombra o Brasil é a questão da frustração social, apontado por Eco na VI característica. Bolsonaro era tido entre os Congressistas como um sujeito do “baixo clero” do legislativo nacional, no entanto, seu discurso de ódio conseguiu cativar corações em um momento de crescente antipetismo.
É inegável como o governo Lula conseguiu promover uma ascensão social na população brasileira, ainda que sem tocar nas estruturas. Nesse aspecto, a população, ao se deparar com a redução do boom das commodities em meio ao governo Dilma, encontrou um cenário de crise econômica e redução do poder de compra. Isso gerou um sentimento de insatisfação que foi aprofundado com a destruição da imagem da classe política diante da Lava Jato.
Compreender o governo Bolsonaro a partir dos pontos levantados por Umberto Eco é quase como um jogo infantil de encaixar figuras nos seus devidos espaços. Bolsonaro flerta com o fascismo e isso é inegável, ainda que as instituições, de maneira efetiva ou não, vêm tentando refrear esse processo.
Foi nesse processo em que Bolsonaro ascende enquanto figura pública importante, carregando consigo e com a sua trupe seu discurso de ódio e seu saudosismo ao regime militar.
Vale ainda retomar a conceituação de fascismo segundo Vladimir Safatle. Para ele o fascismo flerta com 4 grandes elementos em seu processo político: i) Culto à violência; ii) A necessidade do Estado Nação na sua versão paranoica, ou seja, restringindo-se diante outras nações e sempre identificando-as como inimigas, seja na forma de refugiados ou ainda, expandindo a compreensão, à recusa de uma ordem internacional interdependente; iii) Solidariedade à insensibilidade absoluta em relação à violência com classes vulneráveis e historicamente marcadas pela opressão e, por fim, iv) O fascismo será sempre baseado na deposição da força popular em prol de uma liderança fora da lei.
Nesse aspecto, ao colocarmos ambas as definições em processo dialético, encontraremos como resultado o fascismo como operante em nível sentimental, criando laços entre pessoas de modo a formar um grupo. A ideia sempre será que o número de pessoas contidas nesse grupo seja, no mínimo, igual ao número de pessoas necessárias para legitimar o regime.
Dessa forma, há um processo de criação de identidades e rivalidades: o “nós” versus “o outro”, o externo ao grupo e, a partir disso, opera na mentalidade para controlar corpos e perspectivas. Sendo essa identidade de coletividade criada com uma valoração positiva enquanto o extragrupal é o inverso negativo. Segundo Bolsonaro e seu clã, eles seriam pessoas honestas, enquanto os opositores, principalmente o Partido dos Trabalhadores, o centro de tudo que há de mal na Terra.
Além disso, destaca-se ainda o uso da força enquanto manutenção da ordem. Essa força pode ser tanto no aspecto político-legal quanto na sua relação com brutalidade. Não à toa, Eco coloca a correlação entre fascismo e machismo. Nessa perspectiva, a força passa a se apresentar enquanto forma aglutinadora dos anseios, uma vez que utiliza-se disso para construir a figura do “herói”.
Por fim, como aponta Safatle diferentemente de Eco, o fascismo opera à margem da lei. Ascende pelo sistema jurídico e, no caso brasileiro, Bolsonaro o visita diversas vezes para garantir a legitimidade do seu espaço, propagando sua fala e clamando por “liberdade de expressão”, além da sua imunidade parlamentar ainda em período pré-presidencial.
No entanto, Bolsonaro elege-se utilizando-se de vias nem sempre constitucionais, como vem demonstrando o recente inquérito das fake news. Eleito, procura conglomerar seu grupo de apoiadores ao redor de um discurso de ódio, inconstitucional e que atenta aos outros poderes.
Dessa forma, é inegável o flerte bolsonarista com o fascismo. Retomando, Eco apresenta características básicas do regime citado e a figura do presidente se encaixa perfeitamente na maioria dos pontos. Além disso, ao compreender também a análise de Safatle podemos chegar a conclusão de como o atual governo e o fascismo, de modo geral, opera em linhas macro. Resta-nos ainda esperar para avaliar até onde a passividade das instituições pode nos levar.
ECO, Umberto. O fascismo eterno. Rio de Janeiro: Record, 2018
SAFATLE, Vladimir. O que é fascismo. Revista Cult, São Paulo, 22 de out. 2018.
Recomendação: “F de Fascismo”- Por Sabrina Fernandes, canal Tese 11.