FORÇAS ARMADAS E A POLÍTICA NO BRASIL: PODER MODERADOR?
É inegável a existência do pensamento militaresco, tanto na formação política brasileira, quanto na contemporaneidade, com Bolsonaro a frente do Executivo e seus ministros oriundos das Forças Armadas (FFAA’s). Nesse aspecto, devemos enxergar a extrema necessidade de colocar o tema da participação política das FFAA’s em pauta, compreendendo nossa história e, com isso, fazer-nos sempre lembrar da importância da supremacia civil no nosso desenvolvimento enquanto nação.
As Forças Armadas são as instituições (DIAMINT, in: VITELLI; SAINT-PIERRE, 2018) responsáveis pela defesa nacional diante de ameaças externas utilizando-se para isso de meios exclusivos e que não podem ver-se desligadas de seus mecanismos de controle, responsáveis por garantir como sua atividade apenas o que lhe é devido. Nesse aspecto, para vislumbrarmos isso, devemos ter sempre em mente a ideia de supremacia civil, conforme estabelece Saint-Pierre:
A capacidade de um governo civil democraticamente eleito pode levar a cabo uma política geral sem intromissões por parte dos militares, definir as metas e organização geral da defesa nacional, formular e levar a cabo uma política de defesa e supervisionar a aplicação da política militar.(SAINT-PIERRE, 2002. p. 120)
Nesse sentido, como será demonstrado ao longo do texto, a partir de análises históricas, na formação política brasileira não consta momentos efetivos de supremacia civil, pelo contrário, juntos com os demais países da América Latina enfrentamos um período ditatorial. O que acreditamos, no entanto, é que ao longo dos anos, as Forças Armadas desenvolveram um papel como uma espécie de Poder Moderador, remetendo aos anos imperiais.
O Poder Moderador foi estabelecido na Constituição de 1824 como uma espécie de 4º Poder, o qual, segundo o texto da referida Carta Magna, seria um poder neutro e superior a todos os outros. Para se ter dimensão histórica, tal constituição foi escrita por dez juristas brasileiro formados em Portugal e de inteira confiança de Dom Pedro I. Tal ato foi uma resposta do imperador ao projeto constitucional que estava sendo elaborado pela Assembleia Constituinte e que previa um predomínio do Poder Legislativo sobre o Executivo.
De uso privativo do imperador, o Poder Moderador estava acima dos demais poderes e a eles se sobrepunha, cabendo a seu detentor força coativa e a atribuição de nomear e demitir livremente ministros de Estado, membros vitalícios do Conselho de Estado, presidentes de província, autoridade eclesiásticas, o Senado vitalício, magistrados do Poder Judiciário, bem como nomear e destituir ministros do Poder Executivo. O imperador era ainda inimputável e não respondia judicialmente por seus atos.(SCHWARCZ, Lilia; STARLING, Heloísa., 2015 p. 235)
Nesse aspecto, percebe-se que ao longo do período imperial havia uma diferença entre a Constituição e a prática do Poder Moderador. Por diversas vezes, Dom Pedro I utilizou de sua posição política para contrariar o que vinha sendo discutido. O próprio processo de escrita do texto constitucional demonstra isso.
As FFAA’s atuaram diretamente em diversos processos políticos ao longo da história brasileira: da Proclamação da República ao processo de redemocratização e, como grupo de influência na eleição de Jair Bolsonaro. A farda caminha no corredores históricos dos centros de decisão e condução da política nacional. Dentre esses momentos vamos nos atentar a dois: Proclamação da República e a Ditadura Militar.
O episódio do dia 15 de novembro de 1889, sendo uma data importante para a construção política do Brasil, não passa de uma coligação de forças entre a elite que se formava em São Paulo, na forma de Partido Republicano Paulista, e o Exército brasileiro. A participação das Forças Armadas na Proclamação da República é decorrente de um aumento do prestígio com os demais setores da sociedade após a Guerra da Tríplice Aliança e da constante insatisfação com a condução política do Império. (SCHWARCZ, Lilia; STARLING, Heloísa., 2015)
Após esse processo, o Brasil iniciou sua República com dois presidentes militares, Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto. A atuação militar, nesse momento, foi de reivindicação à condução da política nacional diante do Império, uma vez que já detinha um amplo apoio social e, acima de tudo, da elite econômica que vinha se formando no país. Na história brasileira essas duas forças tendem a andar de mãos dadas.
Já no contexto do Golpe Militar em 1964, o que se compreendia era uma tentativa das FFAA’s atuarem novamente na condução do processo político nacional e que tinha início ainda no governo Vargas. Diante do cenário de renúncia de Jânio Quadros houve-se uma tentativa de impedimento da posse de João Goulart, algo que gerou uma maior instabilidade e fez com que o Brasil atravessasse um curto período parlamentarista.
No contexto da política internacional, o que se via era o aumento da instabilidade entre Estados Unidos e União Soviética e, diante disso as FFAA’s já logo se posicionaram em prol ao lado ocidental. Esse pensamento tem centralidade na Escola Superior de Guerra (ESG) pensada, em 1949, após cooperação entre os militares brasileiros e a americana National War College.
Tal escola passou a construir o pensamento militaresco, no sentido de impedir que o “inimigo vermelho” transpassasse as fronteiras nacionais. Não à toa, já no Regime Militar, o Exército passou a fazer parte do Plano Condor, projeto de cooperação da CIA e os regimes autoritários latino-americanos na tentativa de eliminar os opositores aos regimes.
Nesse aspecto, compreendemos que as Forças Armadas agiram sobre próprio interesse, muitas vezes com apoio da elite econômica do país, e contra os interesses nacionais.
No próprio processo de redemocratização, ainda que com respaldo na sociedade, tal processo foi dirigido em grande parte pelo alto escalão do pensamento militar. Golbery do Couto e Silva esteve à frente da elaboração da Lei da Anistia, suprimindo o dever nacional de julgarmos os opressores do regime.
Diante disso, retomando o conceito de Poder Moderador, percebe-se que a participação dos militares nos processos políticos nacionais foi baseada na possibilidade de destituir presidentes, restringir a atividade dos demais poderes e não responder judicialmente pelos seus atos, apenas tendo como objetivo a implementação de uma política de compreensão institucional e, novamente, não de interesse nacional, onde a subjetividade das pessoas foi suplantada a livre determinação do generalato.
As FFAA’s retornaram aos corredores de Brasília com a eleição de Bolsonaro e vivem declarando manifestações contrárias às instituições democráticas. Nesse aspecto, podemos citar a ameaça feita pelo General Augusto Villas-Boas ao regime democrático. Já nesta semana o Ministro do Gabinete de Segurança Institucional, em Nota à Nação Brasileira, faz uma clara ameaça ao regime democrático diante do processo de investigação que recai sobre Bolsonaro e ainda generais da reserva o apoiam através de carta em apoio à manifestação do Ministro. Novamente enxerga-se a burocracia militar atuando no sentido de posicionar-se a favor de uma construção de ordem pública a partir de uma visão própria da instituição, compreendendo essa visão como interesse nacional. Não há falha maior por parte das FFAA’s que não a sua atuação no processo político, protagonizando momentos assombrosos na história brasileira.
Falhamos enquanto nação e enquanto esquerda em permitir isso acontecer, em não trazer a tona as atrocidades estabelecidas entre 1964 e 1985, em eleger um presidente incapaz e que vive cometendo atrocidades na condução da política nacional. Compreender todos esses aspectos e recolocar as FFAA’s para exercer apenas a sua devida função é nosso dever, tendo sempre como princípio a supremacia civil e a democracia.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Constituição (1824). Constituição Política do Império do Brasil. Rio de Janeiro, 1824.
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: edusp, 2005
PEDREIRA, Fernando apud. DREIFUSS, René Armand; DULCI, Otávio Soares. As forças armadas e a política. In SORJ, B., and ALMEIDA, MHT., orgs. Sociedade política no Brasil pós-6l [online]. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2008.
SAINT-PIERRE, Héctor. Formas não-golpistas de presença militar no Estado. Revista Perspectiva, v. 24/25, 2002
SCHWARCZ, Lilia; STARLING, Heloísa. Brasil: uma biografia. São Paulo: Cia. das Letras, 2015