A Estratégia Perfeita de La Casa de Papel

Rafael Barreto
Água de Salsicha
Published in
5 min readMar 16, 2018

É oficial: os serviços de streaming dominaram o mundo. Não assistimos mais televisão aberta, não vamos mais às locadoras para ver um filme e, na verdade, não saímos nem mais de casa. Com a chegada do Netflix, a forma de entretenimento mudou. A desnecessidade de fazer qualquer esforço para assistirmos a qualquer coisa tornou nossas vidas muito mais fáceis e confortáveis. Além disso, começou um movimento de investimento em séries que provaram ser de altíssima qualidade.

Porém, no capitalismo moderno, nenhuma boa ideia se mantém isolada. Outros canais começaram a desenvolver o serviço streaming e produzir séries de igual ou maior qualidade que a Netflix. Vejamos os prêmios Emmy por exemplo: o último vencedor de Melhor Série Drama foi The Handmaid’s Tail, série original da Hulo, enquanto a série Transparent, também coleciona troféus e elogios como um dos carros-chefe da Amazon.

Apesar da acirrada corrida entre as empresas, a Netflix ainda assim mostra que está fazendo melhor o seu dever de casa para entregar para os seus assinantes o que tiver de maior qualidade no mercado televisivo. A partir deste esforço e afinco, fomos apresentados no final do ano passado a uma das maiores febres da atualidade, a minissérie espanhola La Casa de Papel.

La Casa de Papel é uma série que poderia muito bem dar errado. Atores desconhecidos pelo grande público e a natural resistência popular a qualquer idioma que não seja o inglês seriam motivos suficientes para fazer o telespectador de primeira viagem desistir nas primeiras cenas. Porém, La Casa de Papel é muito mais do que tudo isso.

O que está deixando todo mundo intrigado é exatamente isso: como La Casa de Papel, divulgado de forma tão tímida, sem qualquer burburinho em seu entorno, tornou-se um fenômeno tão grande e repentino?

Montada para o formato televisivo, La Casa de Papel se afasta em muitos aspectos do modelo audiovisual europeu, entregando uma história digna de grandes produções hollywoodianas. Assim como os personagens do programa, seus roteiristas parecem ter estudado minuciosamente todos os fatores que fazem uma trama de suspense fracassar e, com maestria, evitaram cada armadilha.

A premissa é a de um assalto à Casa da Moeda espanhola através de um meticuloso e limpo plano elaborado por uma das mentes mais brilhantes da história da televisão. Enquanto assistimos o desenrolar do plano perfeito de dentro da Casa da Moeda, a série inverte a ótica para a operação policial que tenta a todo custo vencer um inimigo tão poderoso.

A febre em torno da La Casa de Papel não é difícil. Ficamos completamente vidrados com esse genial jogo de xadrez, em que cada movimento é impecavelmente estudado, apostando-se sempre no seu acerto e no erro do adversário. Somos sempre surpreendidos com a astúcia (e sorte) dos assaltantes que mesmo nas horas mais improváveis conseguem colocar o plano de volta aos trilhos.

Além de um roteiro repleto de excelentes cenas e falas (a narrativa da Tóquio é um show à parte), a série espanhola acerta no ponto na construção dos personagens. Não existem protagonistas, antagonistas ou até mesmos coadjuvantes. Apenas um compartilhamento de atenções, com as mais diversas subtramas e jornadas individuais que fazem com que a história ganhe cada vez mais nuances e complexidade.

Gostando ou não, cada personagem possui uma função específica na narrativa e a executa com justa importância, fazendo com que o programa avance em diversas frentes sem apontar nenhuma direção para o público. A cada episódio a característica de um personagem pode mudar repentinamente o rumo da trama inteira, o que torna a série ainda mais viciante.

E o mais impressionante de tudo é o esforço bem-sucedido dos roteiristas de não criar um maniqueísmo que influencie na imparcialidade da série. A todo momento somos flagrados torcendo para um lado que não estávamos há alguns minutos atrás. Ao mesmo tempo que queremos que o plano dê certo e que o Professor e seus comparsas entrem para a história com o golpe perfeito, a intensa humanização da inspetora Murillo, a policial encarregada do caso que em cada episódio tem que lutar contra o descrédito e desconfiança de um meio machista, faz com que torcemos para que ela tenha alguma vitória nesse jogo de gato e rato e, quem sabe, saia a grande heroína da série.

Claro que existem defeitos, toda série tem. Alguns clichés ou coisas impossíveis de acontecerem são entregues ao público, que as engole como uma pílula, justamente porque não comprometem a qualidade do que está sendo assistido. Os tropeços geram superações homéricas e é isso que a gente quer assistir.

Como se não bastasse tudo isso, La Casa de Papel conseguiu deixar sua marquinha na cultura pop, gerando boas ideias para fantasias de carnaval e colocando “Bella Ciao” para tocar sem parar na cabeça de todo mundo devorou a primeira temporada. Referências não faltarão.

A série já foi integralmente exibida nas televisões espanholas, mas a Netflix preferiu entregar somente a primeira temporada para seus assinantes, fazendo com que os mais corretos aguardem até abril para descobrir o desfecho desse plano mirabolante.

Merecidamente, La Casa de Papel cunhou seu título como a série do momento, trazendo exatamente tudo aquilo que esperamos de uma boa série de televisão: uma trama envolvente, personagens carismáticos e bem-construídos, indefinição de mocinho e vilão e, mais importante que qualquer coisa, o reconhecimento da inteligência de seus telespectadores, fazendo com que cada episódio esteja sempre um passo à frente das nossas previsões.

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