A representação heteronormativa de relações homossexuais dentro do universo dos animes: “Strawberry Panic!” e “Love Stage”

Água de Salsicha
Água de Salsicha
Published in
5 min readJun 20, 2018

Se você, assim como eu, se interessa pelo universo japonês, deve ter noção de que o mercado de mangás e animês separam seus títulos pelo público-alvo. Sendo assim, o yaoi, que tem como foco relações românticas entre homens, e o yuri, que descreve relações românticas entre mulheres, não são exatamente “gêneros” da indústria cinematográfica e literária.

O mangá yaoi surgiu na década de 1970, sendo produzido por mulheres para o entretenimento de outras mulheres. Por outro lado, não existe um dado exato que aponte quando foi que os primeiros mangás yuri foram produzidos, não tendo um público-alvo específico, podendo servir como histórias eróticas para homens e românticas para mulheres. Ao passo que no Ocidente (aqui!), estas terminologias são usadas quando focam mais no envolvimento sexual do que no emocional, no Japão há uma generalização dos termos.

Uma justificativa comum para o surgimento do gênero yaoi é que um relacionamento entre dois homens seria visto como “ideal”, não restringido pela dominação de gênero imposta pela sociedade, ao contrário de um relacionamento heterossexual. Tendo em vista que a menor valorização da figura da mulher no Oriente ainda é um paradigma, os yaoi representam através da homossexualidade masculina uma sexualidade feminina que é constantemente reprimida pela sociedade. Embora as relações homossexuais não sejam estimuladas no Oriente, são sócio-culturalmente aceitas no universo japonês. Dessa forma, o yaoi não surge como um gênero para satisfazer interesses de homens gays, mas como a voz da mulher oriental.

Strawberry Panic!, criado pela romancista japonesa Sakurako Kimino, é uma série de grande sucesso. O animê tem como foco a vida das adolescentes que frequentam três escolas filiadas e as relações amorosas entre elas. Assim como é percebido em diversos outros animês, a história apresenta relações marcadas pelos papéis de gênero estruturados por uma sociedade patriarcal e sexista.

Ainda que a relação seja composta por duas garotas, percebe-se que há uma delimitação do “homem” e da “mulher” da relação nas personagens secundárias: Amane e Hikari. Amane Otori é desenhada como uma figura alta, de cabelos curtos e ombros largos, com traços menos exagerados, sendo atribuída à uma aparência masculinizada, conhecida pelas estudantes como “Príncipe de Spica”, na medida em que a Hikari aparenta totalmente o inverso, delineada como o modelo kawaii, extremamente feminina, portadora de uma personalidade mais frágil e sensível.

Além de outras personagens seguirem os mesmos estereótipos, como é o caso das personagens principais Aoi Nagisa e Shizuma Hanazono, embora Shizuma não tenha uma aparência masculinizada, ela também possui traços menos exagerados e uma personalidade mais misteriosa e fria, normalmente associada aos personagens masculinos de shöjos — animês com temática romântica voltada para o público adolescente feminino.

No relacionamento entre mulheres reproduzido nos animês, a mulher que toma a iniciativa, logo entendida como a dominante, é a “Tachi”, e a passiva é “Neko”, contudo esses são termos pouco conhecidos, os termos atribuídos aos personagens masculinos são mais usados.

Na medida em que o padrão heteronormativo também pode ser percebido em Love Stage, um yaoi escrito pela Eiki Eiki e ilustrado pela Taishi Zaō (uma mangaka bastante famosa na categoria yaoi) que retrata a paixão de dois jovens universitários: Izumi Sena e Ryōma Ichijō. A trama inicia-se com uma proposta de regravação de um comercial para a TV que havia acontecido dez anos antes, no qual Izumi participou no papel de uma menina ao lado de Ichijō. Desde então, Ichijō é apaixonado pelo parceiro de cena, acreditando que Izumi é uma garota.

A representação do “macho alfa” (Seme) — caracterizado como alto, musculoso e assertivo — e um mais “afeminado” (Uke) — interpretado por um corpo mais magro e delicado e uma personalidade tímida e “fofa”, podendo até ser confundido com uma garota no decorrer do animê, como é visto em Love Stage, é extremamente comum em animês yaoi. Aquele que possui aparência mais “feminina”, como é o caso de Izumi, é sempre passivo durante o sexo, enquanto o “masculino”, representado por Ichijō, é sempre agressivo.

O fato de que esses papéis têm termos específicos com seus significados específicos mostra o quão profundamente enraizado é esse gênero. Nos animes não existem casais que mudem essas funções, na medida em que o personagem é considerado passivo, ele o é em todas as áreas do relacionamento. O Uke pode até ter um pênis, mas ele ocupa a mesma posição de “passividade” que a mulher, só que dentro de uma relação homoafetiva.

O mercado de animês tem dificuldades em sair dos estereótipos que são forçados em cima de seus públicos-alvo, reforçando papéis de gênero e preconceitos que já deveriam ter sido superados, ou seja, vende uma falsa ideia de diversidade enquanto continua reproduzindo os mesmos valores conservadores e sexistas.

“Fujoshis” são mulheres fãs de “yaoi”

O público majoritário não aparenta se preocupar com o conteúdo que tais obras oferecem — não é do interesse se existe uma péssima representação de relações entre pessoas do mesmo sexo ou a romantização de abuso ou estupro (não falei sobre isso, mas assunto importantíssimo, já que constantemente são percebidos dentro do universo das animações japonesas, inclusive os citados aqui) –, pois a fetichização da homossexualidade vende e é por isso que animês e mangás desse tipo continuam a ser produzidos.

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