Aquarius, uma obra de arte necessária e imperdível

Amanda Machado
Água de Salsicha
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6 min readSep 7, 2016

Antes mesmo do filme Aquarius estrear nos cinemas brasileiros, já havia muito burburinho no cenário cinematográfico brasileiro e mundial sobre o filme. A participação no Festival de Cannes poderia ser o motivo, mas mais que isso, a ida do elenco do longa à premiação e a manifestação realizada por eles em pleno tapete vermelho contra a decisão política que acontecia por aqui em pleno maio desse ano, foi o principal motivo da explosão do nome “Aquarius” pelas mídias mundo afora.

Nada mais justo. Sônia Braga, a atriz brasileira reconhecida internacionalmente. Kleber Mendonça Filho, o diretor brasileiro que vem ganhando muito destaque desde o seu último trabalho. Elenco segurando cartazes com frases escritas na língua inglesa — sim, é pra inglês ver mesmo! — que iam contra a decisão do Senado Federal e denunciavam a mesma como golpe. Os contra o afastamento da então presidenta do Brasil, Dilma Rousseff, aplaudiram de pé e plantando bananeira. Os a favor do impeachment e de uma reforma política urgente — tudo bem que eles já esqueceram o que reivindicaram— torceram o nariz para a produção e declaram que era dever deles barrarem o filme.

Poderia ter parado por aí, mas não. A roupagem de filme revolucionário se estabeleceu e essa ideia se instaurou no imaginário do grande público. O embate contra o filme revolucionário também. Polêmicas não faltaram. O filme recebeu uma classificação indicativa de 18 anos, o que impediria uma grande circulação da produção pelo país, apesar de não ter cenas de sexo explícito. Foi levantada a questão: Censura como represália a manifestação em Cannes? As redes sociais bradaram que sim. O Ministério da Cultura voltou atrás, classificação indicativa de 16 anos. A Secretaria do Audiovisual selecionou um crítico declaradamente contrário ao diretor de Aquarius para fazer parte da comissão que decide qual filme brasileiro representaria o país na disputa por uma vaga na categoria de Melhor Filme Estrangeiro no Oscar. Mais barulho! Diretores e membros da comissão abriram mão de participarem da seleção em apoio ao filme. Por fim, Aquarius está na lista de filmes com grande possibilidade de ser selecionado.

Toda a propaganda contrária ao filme vem exercendo um efeito oposto sobre o grande público, especialmente o público jovem. Aquarius vem lotando as salas de cinema Brasil afora. No fim de semana de estréia garantiu mais de 55 mil espectadores. A presença nos cinemas ganhou um significado a mais, virou manifestação contra o governo. O “Fora, Temer!” no final das sessões virou um aplauso necessário — confesso que foi bem gostoso de ouvir.

Não é por menos. O filme é impecável. Ambientado na orla da praia de Boa Viagem no Recife, nossa protagonista é Clara, vivida por Sônia Braga, uma mulher que trabalhou como escritora e crítica de música e vive seus dias recheados de música e mar. Nosso cenário é o edifício Aquarius, onde Clara vive no único apartamento do prédio que não foi vendido para uma empreiteira que quer colocar a construção abaixo e levantar outra em seu lugar. Como Clara não cede as investidas da empreiteira, a empresa resolve infernizar a vida da mulher, que luta com unhas e dentes para viver até o fim da sua vida na casa em que viveu com seu marido, criou seus filhos e viu sua família se formar.

O filme é incrível por muitos motivos. Um dos mais geniais é como as cenas se constroem. Se utilizando de uma fotografia emocionante e de um enquadramento diferenciado, somos presenteados com cenas que não precisam fazer uso de uma linguagem oral ou escrita para transmitir uma informação ou sensação e que vai além ao permitir que o público tenha a chance de interpretar cenas por si mesmo.

Outro ponto alto do filme e de grande destaque na obra, é a trilha sonora arrebatadora. Recheado de clássicos da música brasileira e da música internacional, a trilha sonora funciona como um segundo cenário no longa, permitindo uma imersão na história da protagonista muito mais real e profunda. Além disso, o filme em muitos momentos gira ao redor do aparelho de tocar discos de Clara.

Não só a produção do filme chama atenção. O roteiro e a caracterização dos personagens é uma obra a parte. O roteiro aborda questões como sexo na terceira idade e feminismo, sem nem citar as palavras. Clara é uma mulher livre, forte, inteligente, que compreende sua mortalidade e que vive a vida baseada nos seus próprios ideais. Uma mulher que não se escandaliza com o sexo, que se permite ceder ao seus desejos, ainda que seja vista como imoral. Sem receios, bate o pé no chão e não abre mão do que é seu, mesmo quando ameaçada. Não cede aos conselhos dos filhos e não se permite ser tratada como alguém que não está apta a tomar suas decisões. Uma protagonista empoderada, que é mãe, que foi esposa, que flerta, beija e abraça, mas que é dona de si.

Além disso, nossa protagonista é uma mulher idosa que dialoga muito bem com a juventude, uma mulher desse século em sua plenitude e isso fica muito claro quando divide as cenas com seu sobrinho. Do pen drive com músicas em mp3 até conselhos amorosos. Clara é uma protagonista imbatível, que insere sua feminilidade desde os cabelos, ora soltos, ora presos, até o modo como se relaciona com as pessoas mas que se permite ser frágil. Sônia Braga nos oferece sua melhor face, é de arrepiar.

O cenário político funcionou como propaganda para o filme, sem dúvida. Mas independente de toda a polêmica, o filme é uma obra de arte brasileira. Um trabalho muito peculiar e perfeitamente bem realizado, para escritor nenhum da Veja colocar defeito. Apesar da posição política dos atores e da produção do filme, Aquarius é uma obra necessária e imperdível. Que nos alcança com o toque mais singelo e arrebatador possível. Impossível não ceder aos aplausos.

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Amanda Machado
Água de Salsicha

Médica, dançarina, educadora em Projeto Luar de Dança, escritora do quadro Mulheres em Ação na página Água de Salsicha. Sobretudo, feminista!