Como a participação das mulheres na Independência da Irlanda virou uma série da Netflix

Amanda Machado
Água de Salsicha
Published in
6 min readAug 19, 2016

Rebellion é uma minissérie para televisão que se passa no ano de 1916 na Irlanda. Dirigida por Aku Louhimies e escrita por Colin Teevan, o drama se ambienta na Revolta da Páscoa, rebelião que aconteceu na Semana Santa e que tinha como objetivo a independência do país em relação ao Reino Unido. Rebellion não é apenas uma minissérie de guerra recheada de drama com protagonistas mulheres, é um lembrete da importante participação feminina nesse evento histórico.

Distribuída pela Netflix, a minissérie retrata a organização da revolta pela Irmandade Republicana Irlandesa, que se uniu ao Exército Civil Irlandês, aos membros da entidade Voluntários Irlandeses e ao grupo feminino Cumann na mBan, culminando com a proclamação da independência da República da Irlanda. O grupo rebelde resistiu às forças inglesas por seis dias, quando então se rendeu. Fatos históricos, é nisso que a série se baseia para criar um ambiente de discussão acerca de valores humanos, usando além de personagens fictícios, personagens baseados em líderes da rebelião.

Nesse contexto, a série se propõe a colocar no lugar central, mulheres que fizeram parte do evento e as reviravoltas que aconteceram em suas vidas como consequência deste. Inicialmente somos apresentados a três amigas companheiras de palco em uma peça de teatro. Frances, Elizabeth e May são jovens mulheres irlandesas, mas não somente. Frances é uma professora que atua desde o início da Primeira Guerra Mundial como instrutora de jovens voluntários e é peça fundamental no grupo dos Voluntários Irlandeses. Já Elizabeth, é uma jovem estudante de medicina advinda de uma família rica que vive em um conflito entre seus ideais socialistas e a vida que sua família leva. May é uma jovem de classe média que vive em Dublin, trabalha para a administração da Coroa Inglesa na Irlanda e vive um romance com seu patrão.

Não só as protagonistas são personagens muito ricas e repletas de questionamentos sobre a liberdade feminina, como muitos dos personagens masculinos da série são adeptos de discursos acerca da igualidade entre os sexos, o que é mostrado com destaque em vários diálogos.

Um ponto forte da minissérie é como o roteiro se desenrola para o crescimento das protagonistas como donas de suas próprias vidas e vontades. Inicialmente temos uma Elizabeth que apesar de estar muito envolvida com a organização da rebelião, não se opõe ao casamento às pressas com um membro do Exército Inglês, mas que quando chamada à luta, abre mão de tudo sem pesar as consequências disso. A jovem acaba participando pouco do front e atuando mais no cuidado dos feridos, mas quando o grupo rebelde é derrotado, a moça abre mão dos privilégios de ter um noivo responsável pelo rendição dos traidores e escolhe ir para a prisão junto aos seus companheiros de luta. Temos a chance de ver o ápice de seu empoderamento quando ela se nega a afirmar que foi enganada por um homem para participar da revolta.

“Por que vocês, homens, acham que toda coisa séria que uma mulher faz é consequência de estar apaixonada por algum homem ou ser iludida por um homem? (…) Eu sei o que você está querendo fazer. O que todo homem tenta fazer com toda mulher. Mas tenho cabeça própria, George.”

O crescimento de Frances acontece de maneira diferente. A mulher que cresceu em um Convento após ser deixada por sua mãe, que, pelas referências, também era uma rebelde, é uma mulher focada e decidida a morrer pelo seu ideal desde as primeiras cenas. Vive para a entidade Voluntários Irlandeses, servindo cegamente ao líder Patrick Pearse. Ao lhe ser negado o direito de participar da luta armada, apesar de sua capacidade, devido a sua condição feminina, ela se revolta. Frances não se dá como vencida e participa, ainda que vestida com roupas masculinas de todas as missões que lhe são propostas. No fim da rebelião, resignada, ela compreende os riscos de se viver sem pesar as consequências.

May, por outro lado, se quer distante da rebelião, a qual ela não entende como necessária ou justa. O grande conflito de sua vida está aliado ao fato de viver um relacionamento com um homem casado e estar grávida de um filho ilegítimo. Apesar do homem estar apaixonado por May, o casamento perfeito com a sua esposa infértil é a prioridade, permitindo que May passe por toda sorte de humilhações para se manter a salvo. A protagonista engrandece ao tomar as rédeas de sua vida, não permitindo que o inglês mande e desmande em sua vida e que sua esposa a destrate. Apesar de contar com a ajuda de Frances, já que a história das duas se misturam, ela acaba por abrir mão de seu filho para garantir um futuro para ambos.

Frances: E para o inferno quem a condena. O mundo está mudando.
May: Acha que algumas balas e bombas mudarão alguma coisa para mim? Para qualquer mulher? Sua mãe teve que desistir de você, será o mesmo comigo.

Todo o elenco feminino da minissérie vai evoluindo através dos episódios, a mãe de Elizabeth, interpretada pela Michelle Fairley, a Catelyn de Game of Thrones, é uma personagem que ao se deparar com uma população miserável em um momento de guerra, abre as portas de sua casa para banir a fome dos menos favorecidos. Já a personagem Ingrid, surge no decorrer da série como a noiva em busca do amado e acaba por descobrir um novo objetivo para sua vida ao cuidar dos feridos. Abrindo mão, inclusive, do noivo para partir rumo à sua vocação.

Apesar dessas mulheres serem personagens que vivem no século passado, elas ainda são figuras muito reais se extrapolarmos para a atualidade. Mulheres que são abandonadas e precisam abrir mão de serem mães para seguirem em suas vidas de sacrifícios. Mulheres que bradam por igualdade mas continuam em uma relação de submissão. Mulheres que tem um ideal mas vivem em uma realidade social opressora. Enfim, mulheres que vemos todos os dias caminhando pelas ruas.

Uma incrível curiosidade acerca do roteiro da minissérie é a sua inspiração em mulheres reais que atuaram ativamente na Revolta da Páscoa. Na minissérie somos apresentados à grande figura da Condessa Constance Markievicz, que teve um importante papel de liderança na revolta e foi sentenciada à morte, sendo vista como uma das grandes heroínas da história mundial.

A minissérie nos apresenta um roteiro que trabalha afim de criar um projeto sobre a voz, as limitações e o poder feminino. Apesar de nos depararmos com a hipocrisia de discursos liberais que quando confrontados não vão além do discurso, como o do líder da revolução, somos presenteados com uma minissérie que não peca em construir grandes papéis femininos. O roteiro pode ter cometido erros ao retratar a história de seu país com um olhar enviesado, como dizem algumas críticas, mas não falhou em retratar mulheres que lutam mas que são possíveis, mulheres que pensam, que tem ideais e que seguem em busca dos seus objetivos, sejam eles quais forem.

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Amanda Machado
Água de Salsicha

Médica, dançarina, educadora em Projeto Luar de Dança, escritora do quadro Mulheres em Ação na página Água de Salsicha. Sobretudo, feminista!