Consideramos Justa Toda Forma de Amor

Rafael Barreto
Água de Salsicha
Published in
5 min readFeb 16, 2018

Em 2006, o diretor mexicano Guilhermo del Toro encantou plateias do mundo inteiro com seu místico e sombrio O Labirinto do Fauno. A caracterização fantasiosa dos monstros que criou no filme demonstrou uma assinatura, um traço estético próprio e revelou o domínio sobre um campo pouco explorado nos dias atuais: filmes sobre monstros.

No início do século passado esse era um gênero extremamente popular. A Universal Studios praticamente construiu seu patrimônio gigantesco e firmou seu nome como uma das maiores produtoras de Hollywood com o lançamento de quase 100 filmes entre 1920 e 1960 sobre monstros como a Múmia, Drácula, Frankestein, etc. Em 2013, a Universal anunciou a retomada destes projetos, lançando o Dark Universe, um projeto de criar um universo compartilhado dos monstros da Universal, que já conta com astros como Tom Cruise, Johnny Depp, Russell Crowe e Javier Bardem. Porém, seu futuro tornou-se incerto com o fracasso comercial de A Múmia, primeiro filme da franquia.

Voltando: enquanto estes filmes clássicos da Universal focavam no terror e pavor causado por estes monstros, sempre da perspectiva da sociedade perante a aberração, Del Toro preferiu mudar o foco. Por que não enxergar o mundo da perspectiva do monstro e entender, afinal, quem é a aberração?

Com essa proposta, Del Toro lançou aos cinemas este ano o aclamadíssimo A Forma da Água, indicado a 13 Oscars e vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza.

O filme se passa em 1962, em meados da Guerra Fria, e conta a história de amor entre uma faxineira muda e o monstro cobaia do laboratório de uma base secreta do governo norte-americano em que ela trabalha.

Com uma belíssima trilha sonora (favorita ao Oscar) de Alexander Desplat, uma cenografia e fotografia vivas e coloridas, Del Toro promove o encontro de Amelie Poulain com O Monstro da Lagoa Negra, criando um hino à solidão, aos desajustados e ao amor na sua mais pura forma.

Todos os personagens do filme são solitários, desajustados e se sentem excluídos de alguma forma. A faxineira muda que vive sozinha sem conseguir se comunicar com as pessoas. A faxineira negra que esbarra em limitações em meio a uma sociedade racista nos anos 60 norte-americanos. O artista frustrado velho e gay que passa o dia assistindo televisão, arrependido por não ter vivido a vida que teve. O espião russo que não acredita na Guerra Fria e discorda das diretrizes de sua nação. Temos até o homem branco pai de família, cheio de privilégios que, no boom do consumismo, busca o materialismo para se sentir bem-sucedido. E claro, a criatura, vista como uma aberração, um objeto científico.

Através de todo esse conjunto de solidões e desencaixes, o roteiro de Del Toro escreve sobre humanidade, compaixão e empatia. Ao invés de explorar o temor provocado pela aberração, o filme versa sobre a identificação entre os diferentes e a beleza que existe em cada peculiaridade. A saída para a solidão de seus personagens é entender e abraçar a solidão dos outros, o que gera uma belíssima história de amor.

Além disso, a história de amor entre um ser humano e uma criatura marinha ainda cria uma metáfora sobre as diferentes formas de relacionamento e de amor que surgem em nossa sociedade. Se saímos do cinema convencidos de que esta bizarra e fantasiosa relação de amor é bonita, se a aceitamos e até torcemos por ela, passamos a legitimar qualquer outra relação amorosa, pois como ensina o filme, o amor ultrapassa as nossas limitações corporais, nossa forma.

O resultado deste filme extremamente poético é uma verdadeira declaração de amor ao cinema por Guilhermo Del Toro. Das seletas laranjas escolhidas pelo mexicano, expreme-se o que há de melhor na arte audiovisual, criando um filme perfeito em todos os aspectos. A leve e sutil harmonia entre cenário, trilha sonora e fotografia é um espetáculo de se assistir.

Diante de uma obra tão redonda, a entrega do elenco não poderia ter sido melhor. Sally Hawkins, no papel principal, não diz uma palavra o filme inteiro e seu trabalho corporal é emocionante. Richard Jenkins, um dos atores com mais trabalhos na carreira do cinema norte-americano, ganha sua segunda indicação ao Oscar com muito mérito no papel do vizinho melancólico, obstinado a finalmente fazer alguma coisa relevante em sua vida. A surpresa do anúncio dos indicados ao Oscar fica com Michael Shannon, um ator sempre excelente em seus papéis que brilha como o antagonista do filme, mas que não conseguiu emplacar seu nome na categoria de Melhor Ator Coadjuvante.

A poesia de A Forma da Água fez com que fosse o filme mais premiado do Globo de Ouro e o mais indicado do Oscar deste ano. Seu desafio será desbancar o favorito Três Anúncios para um Crime, o que não é impossível. Mas uma coisa parece certa: Guilhermo Del Toro vai levar seu merecidíssimo Oscar de Melhor Diretor. Apesar da conjuntura atual, do contexto histórico em que serão premiados os filmes deste ano, o Oscar precisa de uma leveza e há muito tempo não assistimos a algo tão bonito e sutil nas telas de cinema.

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