Não pare de assistir “3%”, a série brasileira da Netflix, apesar de seus defeitos…

Matheus Ferreirinha
Água de Salsicha
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5 min readMay 13, 2018

Assim como seus protagonistas, ‘‘3%’’ passou por um longo processo até alcançar seu merecimento no Maralto da Netflix. Tendo iniciado sua jornada em 2011 com o lançamento de seu piloto diretamente no YouTube, a série rapidamente ganhou destaque pela sua inovação em relação ao cenário brasileiro de entretenimento. Somente em 2015 sua produção foi oficialmente anunciada em parceria com a gigante do streaming.

A série conta a história de uma distopia na qual a sociedade se divide entre o Continente, a total falta de recursos, e o Maralto, o auge da tecnologia e fartura. Infelizmente, existe uma única maneira de mudar de vida e ir para o outro lado, o Processo. Após completarem 20 anos, os participantes tem a oportunidade de provarem ser os 3% mais dignos de ingressarem no mundo de prosperidade, através de desafios controversos. Ainda que signifique a traição, a humilhação ou até mesmo a morte dos que ficaram para trás…

É fácil perceber os pontos que fizeram a produção ser comparada à célebre saga “Jogos Vorazes” mesmo que sua concepção na mente de Pedro Aguillera tenha surgido antes do lançamento das adaptações para o cinema. Entretanto, outro paralelo mais próximo é o processo que os jovens do mundo inteiro passam ao chegarem ao vestibular. No Brasil, essa relação é ainda mais real, tendo em vista a grande diferença no nível socioeconômico entre os que possuem ou não um título de ensino superior. Além disso, a falsa meritocracia criticada pelo programa é um dos pontos altos de seu sucesso, se fazendo muito presente nas divergências políticas de nosso contexto atual.

Apesar de seu enredo extremamente original e envolvente, “3%” enfrenta diversos problemas quanto a sua execução. Trabalhando com um orçamento limitado em sua primeira temporada, a falta de recursos pode ser vista de modo evidente no elenco pouco conhecido e no cenário muito repetitivo. De certo modo, isso serviu para destacar o bom trabalho de Michel Gomes e Vaneza Oliveira com seus respectivos personagens, Fernando e Joana. Era esperado que com a renovação alguns desses pontos fossem resolvidos.

De fato, a esperada apresentação do Maralto diversificou a ambientação da série, tornando esse local maravilhoso mais real para o público. Ainda assim, é difícil conceber um universo no qual uma sociedade altamente avançada se mantém com cerca de 1000 pessoas. Mesmo que relevemos essa falta de credibilidade dessa distopia, a péssima direção de elenco vista nos diálogos é ainda mais preocupante. Com personagens bobos e caricatos, a trama perde parte de seu impacto.

Outro ponto decepcionante é o discurso raso da Causa, a resistência contra o Processo. Alternando entre utópicos pacifistas a terroristas cegos, ocorre a clara perda de identidade do movimento vista anteriormente. Isso é amplificado com as inúmeras reviravoltas e trocas de lado dos personagens, perdendo todo e qualquer sentido da unidade de seus membros. Claramente, a intenção era questionar qualquer extremismo político e usar isso para justificar a direção que o enredo tomaria.

Quando a intenção dos escritores fica evidente nas ações dos personagens, é mais difícil acreditarmos nas mesmas. Diferentemente de obras como Guerra dos Tronos nas quais as consequências das atitudes de cada personagem levam a trama para o próximo passo, “3%” toma o rumo fácil com diversas conveniências quase “mágicas”. Chega a ser cômica a introdução de uma personagem que descobrimos ser mãe de um de nossos protagonistas, uma verdadeira novela mexicana com toque de ficção científica.

O ponto alto da temporada é a revelação da história do Casal, ou melhor, Trio Fundador. Trazendo bons atores como Maria Flor, Fernanda Vasconcelos e Silvio Guindane, a série foi capaz de demonstrar o significado de poliamor com muita naturalidade. Além disso, como é de se esperar de uma série brasileira que tenta ser realista, a representatividade do elenco é rapidamente notada. Temos uma sociedade extremamente diversa, inclusive com a incrível participação de Liniker em uma cena fenomenal cantando Cartola como um verdadeiro carnaval de rua carioca.

Não podemos negar que a construção desse universo foi bem intencionada e original, apenas faltou experiência para dar profundidade e realismo ao mesmo. Porém, somente a partir da tentativa pode haver o desenvolvimento da ficção científica no cenário brasileiro. Ainda muito incipiente e muitas vezes amadora, todo o apoio por parte do público é necessário. Portanto, assim como nossos protagonistas, temos que nos unir para não sermos apenas os outros 97%…

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Matheus Ferreirinha
Água de Salsicha

Amante de livros, quadrinhos, séries e filmes. Jogador em tempo integral. Escritor amador. Médico nas horas vagas.