“O que mudaria na sua vida se você fosse um menino?”¹

Amanda Machado
Água de Salsicha
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4 min readAug 28, 2016

Na última sexta-feira, dia 26 de agosto, comemorou-se 96 anos da ratificação da emenda que garantiu o direito ao voto às mulheres norte-americanas — direito conquistado pelas mulheres brasileiras apenas 12 anos depois — e para comemorar, nada melhor que um bom documentário sobre como se deu a luta pelos direitos que desfrutamos hoje. She’s Beautiful When She’s Angry (Ela fica linda quando está com raiva, em tradução livre) se propõe a isso.

Dirigido por Mary Dore, o documentário de 2014 que chegou ao Netflix esse ano mescla registros visuais antigos com relatos atuais de mulheres que participaram ativamente nas manifestações feministas das décadas de 1960 e 1970 nos Estados Unidos. Até mesmo o título do documentário é uma crítica ao machismo. Ao usar ironicamente uma frase que é utilizada contra as mulheres de forma a as ridicularizar, o título reafirma que devemos, sim, ter raiva e usar dela a nosso favor.

Uma das grandes oportunidades oferecidas pelo documentário é a de vermos relatos de nomes extremamente importantes, ainda que não tão conhecidos do grande público feminista, o que é muito interessante para quem se interessa por história feminina e não encontra espaço que atenda à essa necessidade. Além disso, conhecermos mulheres reais, que passaram por inúmeras opressões e indignadas, foram à luta e não se calaram.

“A única coisa realmente perigosa foi falar. Porque dizer a verdade e falar é muito revolucionário.”

O mais genial do documentário, que além de ter conquistado todos os principais veículos de críticas também recebeu vários prêmios, foi ter conseguido realizar a façanha de fazer de um documentário sobre uma onda de eventos que aconteceram há 50 anos atrás, ser extremamente atual. Atual pois muitas das falas nos lembram, inclusive propositalmente, que nenhuma vitória é permanente. Muitos dos direitos reivindicados e conquistados por elas ainda não são realidade mundial e, mais, sofreram um retrocesso graças a uma sociedade que ainda o é, em grande parte, controlada por homens e feita para eles.

Outro fator muito interessante do documentário é o seu formato não focado em apenas uma vertente do movimento, mas seu comprometimento em mostrar as várias linhas de pensamento dentro do movimento feminista. Discussões sobre a luta pelo direito ao aborto, feminismo negro, feminismo lésbico, a necessidade de creches, esterilização forçada, defesa pessoal e a participação dos homens no movimento, são temas abordados no documentário.

Mais do que um bom documentário, She’s Beautiful When She’s Angry, é um trabalho que se compromete a levar o assunto para o debate, incluindo inclusive relatos em que líderes do movimento criticam seus próprios comportamentos à época. Umas das críticas mais válidas é a de que apesar do ideal de liderança coletiva, muitos papéis de liderança se formaram e em muito foram cópias do estilo de liderança masculino. Esse tipo de comportamento opressivo com as próprias companheiras, em um clima de competição, foi justificado pelo fato de muitas daquelas mulheres sentirem que aquela seria a única chance delas terem a própria voz. Entretanto, muitas mulheres sentiam suas causas excluídas do movimento.

“Me sinto oprimida pelo fato de você existir.”

Outro questionamento sobre o comportamento de algumas ativistas que surge ao longo do documentário é a opressão exercida sobre as mulheres que se relacionavam com homens. Questões como “Por que você dorme com o inimigo?” eram frequentes e o lesbianismo por ideologia foi difundido sem muito critério, com imposições sobre as mulheres que aderiam ao movimento.

Um fato muito curioso foi assistir mulheres já na década de 1970 questionando o uso indiscriminado da pílula anticoncepcional, que naquela época era oferecida à paciente sem ao menos uma bula. Apesar do tempo que se passou entre o movimento norte-americano e os dias de hoje, o questionamento sobre a falta de informações oferecidas às pacientes não podia ser mais contemporâneo.

She’s Beautiful When She’s Angry é um lembrete incrível sobre o quanto ainda temos para lutar até que finalmente consigamos ter um lugar de igualdade na sociedade. Mas também do quanto podemos conseguir se levantarmos nossas vozes juntas em um grito único. Afinal, eu, você, as mulheres ouvidas no documentário, todas nós, agora, “ainda” somos o movimento.

“Mulheres do Mundo, Uni-vos!

¹ A pergunta que dá título ao texto era feita para as participantes dos grupos de discussão feminista que surgiram no início do movimento feminista norte-americano na década de 1960.

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Amanda Machado
Água de Salsicha

Médica, dançarina, educadora em Projeto Luar de Dança, escritora do quadro Mulheres em Ação na página Água de Salsicha. Sobretudo, feminista!