Pantera Negra: Representatividade sem Profundidade

Matheus Ferreirinha
Água de Salsicha
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6 min readMar 7, 2018

Com um lançamento avassalador, “Pantera Negra” quebrou diversos recordes de bilheteria, estando no mesmo patamar de títulos como “Avatar”, “Star Wars — O Despertar da Força” e “Jurassic Park: World”. Não se tratando apenas de mais um filme de herói, mas um filme que tenta trazer questionamentos sobre a nossa sociedade, a obra rapidamente dividiu as opiniões do público. Em um movimento antiprogressista injusto, os mais conservadores não pouparam críticas mesmo antes da estreia. No entanto, não há como negar as inúmeras qualidades do longa.

Inicialmente, é evidente o realce para o protagonismo feminino mesmo em uma sociedade patriarcal que passa o reinado e o manto do Pantera para os homens da dinastia. Isso pode ser visto pela grande diversidade de arquétipos das nossas protagonistas. Okoye (Danai Gurira): a chefe das Dora Milaje, a guarda real wakandiana, com sua força e lealdade. Nakia (Lupita Nyong’o): a mais respeitável espiã do reino, com sua independência e altruísmo. Shuri (Letitia Wright): a chefe da divisão tecnológica do país, com sua inteligência e descontração. Apesar do longa levar seu nome, o Pantera (Chadwick Boseman) é praticamente ofuscado quando em cena com essas mulheres mais do que empoderadas.

Outro aspecto importante é a qualidade técnica sempre presente nos títulos da Marvel. Além dos efeitos computadorizados, “Pantera Negra” se destaca com seu figurino e trilha sonora. O visual do filme é fruto de grande pesquisa por parte do diretor Ryan Coogler e sua equipe, tentando trazer a “verdadeira África” para as telas de Hollywood. Misturando as cores e roupas tradicionais ao futurismo da nação de Wakanda, a direção artística criou um universo único que respeita suas raízes na cultura africana. Enquanto isso, as músicas foram compostas pelo premiado Kendrick Lamar especialmente para a obra. Em parceria com grandes nomes como Khalid, SZA, 2 Chainz e ScHoolBoy Q, a trilha sonora age como a síntese da música negra contemporânea, exaltando todo seu potencial e particularidade. Contudo, a essência do filme está em seu questionamento social e ideológico, crucial no momento político atual.

Se no passado os movimentos sociais foram marcados pela luta por direitos constitucionais, o século XXI traz um conceito mais sutil, porém não menos importante, a representatividade. Enquanto alguns menos esclarecidos teimam em afirmar sem pesar que isso tudo não importa, o impacto de vermos nossos semelhantes em uma esfera de exaltação é imensurável. Todas as minorias sofrem com a falta de representantes na cultura popular, mas após o grande sucesso de “Mulher Maravilha”, o vazio para um representante negro nos filmes de super-heróis se tornou ainda mais gritante.

Obviamente, não estamos esquecendo que o impenetrável Luke Cage ganhou sua própria série no final de 2016. Infelizmente, seu sucesso ficou restrito aos assinantes da Netflix, para a classe média de grande maioria branca. Além disso, o herói do Harlem, apesar de ser um exemplo de empoderamento, reforça o esteriótipo racial da força bruta em detrimento do aprimoramento intelectual. É nesse aspecto que o novo filme da Marvel procura inovar.

Trazendo um protagonista preparado e inteligente que utiliza a estratégia para vencer seus inimigos, “Pantera Negra” traz uma nova faceta ao herói negro no cinema com um estilo que oscila entre o lado sombrio Batman e o charme do James Bond. Nascido na família real de Wakanda, T’Challa é o líder dessa nação africana que tem tecnologias sequer imagináveis pelo resto do mundo cujo avanço tem origem na rica fonte de Vibranium da região, um metal fictício com propriedades inigualáveis. Entretanto, o longa é cuidadoso em não tratar o poder do Pantera como algo advindo apenas de sorte por sua localização geográfica, mostrando a importância da construção da sociedade wakandiana ao redor do protecionismo e cooperação. Esse ponto é fundamental para entendermos a motivação do vilão Killmonger, que no início do filme demonstra-se ideologicamente contrário a política de isolamento do reino e a favor da militarização de todos os negros em sofrimento pelo mundo. Como nem tudo são flores, é nessa dicotomia que o longa mostra suas fraquezas.

Inspirado abertamente nas divergências entre Martin Luther King e Malcom X, o conflito de visões de mundo entre o Pantera e Killmonger representa uma guerra de ideologias. Tendo vivido fora de Wakanda por toda sua vida, nosso antagonista conheceu a realidade dos negros fora da próspera nação africana, onde sem nenhuma proteção sofrem as consequências de uma cultura racista e colonizadora. Nascido em Oakland o berço do “Movimento dos Panteras Negras”, aliou-se ao pensamento de Malcom X, vendo como única solução o fortalecimento da comunidade negra através da organização e da militarização. Ao mesmo tempo, T’Challa cresceu em segurança com a noção que a justiça sempre deve prevalecer de forma pacífica como Martin Luther King defenderia. Confrontar o público com a escolha entre opiniões opostas poderia ter sido um grande convite ao questionamento de nossa conjuntura social e política atual, mas infelizmente não é dada a oportunidade de decisão aos telespectadores…

Rapidamente, nosso antagonista passa de radical esclarecido e bem motivado a um mero criminoso sanguinário de história em quadrinhos. Tomando o lugar de T’Challa como rei e protetor de Wakanda, Killmonger cria apenas medo e caos e impede qualquer defesa a sua ideologia. Reforçando o esteriótipo da nação africana facilmente corrompível, o filme mostra que mesmo a sociedade negra mais avançada do planeta sucumbe em instantes para uma guerra civil com famílias e amigos lutando de lados opostos da batalha. Ao invés da união contra a cultura da supremacia branca colonizadora, “Pantera Negra” termina em um triste confronto entre irmãos. A derrota de Killmonger é também o fim da revolução, resta apenas o resignado nobre em seu mundo fechado e egoísta.

De qualquer forma, “Pantera Negra” conquistou o público trazendo consigo uma nova legião de fãs que ainda esperavam ser representados nas telas do cinema. Mesmo com a falta de profundidade e possibilidade ideológica, o longa traz um herói negro empoderado diferente dos esteriótipos dos anos 60. Um longa que marcará a história mostrando que filme de super-herói e filme negro não são coisas diferentes. Por mais filmes como “Mulher Maravilha” e “Pantera Negra”. Por mais representatividade. Por mais profundidade.

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Matheus Ferreirinha
Água de Salsicha

Amante de livros, quadrinhos, séries e filmes. Jogador em tempo integral. Escritor amador. Médico nas horas vagas.