Quem não foi hipnotizado por "Corra!" ?

Caio Simão
Água de Salsicha
Published in
9 min readMar 8, 2018

Estamos todos no "Sunken Place" até agora.

Corra!(2017)

Quando Jordan Peele anunciou que estava desenvolvendo um filme de suspense psicológico, muita gente ficou surpresa. Isso porque o afro- americano fez fama nos EUA com a comédia através de seu show de sketchs humorísticas, o Key & Peele da Comedy Central e alguns outros trabalhos na área. E mais, Peele não iria só ser o roteirista como também iria dirigir o longa. Foi então com desconfiança que a crítica aguardou Corra!(2017), o filme de 2017 que mais surpreendeu. No último dia 04, assistimos a Peele subir o palco do Dolby Theatre para fazer seu discurso em razão do Oscar de Melhor Roteiro Original. Além dessa vitória, o filme foi também indicado a Melhor Filme, Melhor Diretor(Jordan Peele) e Melhor Ator(Daniel Kaluuya).

Essa crítica então vai tentar explicar esse caminho. Do olhar desconfiado ao olhar espantado pela tamanha qualidade artística de um dos melhores filmes de 2017. Que surpresa agradável.

A sinopse relâmpaga

Chris(Daniel Kaluuya), um jovem afro-americano, vai visitar a casa dos pais de Rose(Allison Williams), sua namorada, de família branca e rica. A partir daí, eventos esquisitos começam a se suceder, sempre rodeados a partir de uma enorme tensão racial, rumo a um clímax dos mais inesperados.

O espectador não quer acreditar no pior

Quando se começa a ver o filme, sabe-se de antemão que aquilo não é uma comédia romântica ou uma história de amor. Além disso, tudo que rodeia o filme desde seu trailer, seu título, sua imagem de divulgação deixa bem claro que vamos assistir uma história tensa. O clima do filme só não é tenso na primeira cena, na qual o casal principal está na casa de Chris.

A partir daí, Peele tem o compromisso de te deixar desconfortável. Tudo acontece sob um clima misterioso, com um ar de sobrenatural. A cena do veado morto na estrada é importantíssima para avisar desde então que sim, esse é um filme que vai te deixar confuso, curioso e apreensivo. E indo mais além, a cena de Chris olhando fixamente para o veado morto sugere uma identificação, que fica com o espectador. Quem atropelou o indefeso animal foi Rose, afinal.

O veado e Chris frente a frente.

Então, durante o início para a metade do filme o que acontece são diversas sugestões de que um segredo dos mais cabeludos está sendo escondido. E o espectador não quer acreditar no pior. Mas, quando nos damos conta do que irá acontecer, é até pior do que poderíamos imaginar. Esse é o grande segredo do sucesso desse premiado roteiro original. Desafiar o espectador e deixá-lo curioso para mostrar um segredo ainda mais grave do que poderia ter sido pensado.

O papel dos funcionários afro-americanos e Logan

Antes do segredo ser de fato revelado, os momentos mais tensos são causados pela relação de Chris com os dois funcionários da casa da família Armitage. Georgina e Walter interagem de maneira excessivamente formal, mas sobretudo sempre passando uma mensagem subliminar, como se o inconsciente estivesse tentando se comunicar, o que de fato ocorria.

Walter(Marcus Henderson)

Os dois querem avisar algo a Chris de maneira inconsciente. A atuação dos dois atores é precisa. Eles parecem duas pessoas sem emoção, robotizadas, fruto de uma lavagem cerebral, que tentam se comunicar em outros planos com Chris.

Georgina(Betty Gabriel)

Aplausos para Betty Gabriel e Marcus Henderson por causarem as cenas mais perturbadoras e apreensivas do filme. O que é a cena da Georgina se aproximando para tentar se explicar para Chris e chorando copiosamente sem demonstrar a razão? O choro é o aviso, assim como foi com Walter, de que algo ali está muito errado. É a mensagem do inconsciente.

Por fim, um dos convidados da festa da família Armitage consegue fazer o que Georgina e Walter estavam tentando. Avisar diretamente a Chris para sair de lá o mais rápido possível. Numa das cenas mais icônicas do filme, Logan sai da hipnose por causa de um flash acidental de uma foto que Chris tentou tirar dele, já que desconfiava que o reconhecia de outro lugar, mas que agora o homem agia de maneira muito peculiar, semelhante a Georgina e Walter, um jeito robótico e formal.

Logan(Lakeith Stanfield)

Então, Logan entra em desespero para tentar avisar o mais rápido possível a Chris para fugir de lá. Uma brincadeira saudável e de bom gosto com o título do filme. Uma cena que certamente ficará marcada e será lembrada por muito tempo na Cultura Pop, assim como foi na cerimônia do Oscar por Jimmy Kimmel como você vê abaixo:

A trilha

A trilha sonora de Corra!(2017) é fundamental para determinar um clima apreensivo. O espectador está sempre achando que uma tragédia é iminente por causa desse particular aspecto do longa. A trilha é quase toda instrumental, de Michael Abels e Timothy Williams e ela também assusta com suas notas altas e agudas em momentos específicos, principalmente com Georgina.

Fora a parte instrumental, destaque para a grande música de Childish Gambino(Donald Glover), o ator/músico/roteirista aclamado pela série Atlanta. Redbone aparece no início do longa e já declara a grande tensão racial que o filme apresentará. Uma excelente música que merece a devida atenção. Você confere ela abaixo:

Um filme que merece ser revisto

Escrevi uma reflexão aqui no site sobre como assistir um filme pela segunda vez pode ser proveitoso e mudar muito sua opinião. Você pode conferir o post aqui:

É o caso com Corra!(2017). Quando se revê o filme já ciente do grande segredo por trás de códigos e mensagens, percebe-se que Peele brincou muito com o espectador, com fortes dicas do que poderia vir a acontecer. E alguns "easter-eggs" bem colocados como um quadro ao fundo da tela com a frase Chris Death na cena de Chris com Georgina no quarto.

Uma dica que é fácil de pegar da primeira vez é notar que o afro-americano sequestrado da primeira cena do filme é nada mais nada menos que o próprio Logan. Parece fácil mas nem todo mundo sacou essa. E que o capacete encontrado por Chris no banco do carona é o mesmo que o sequestrador utilizava.

Uma dica forte de que Rose era na realidade uma inimiga foi a reação da bela quando uma das convidadas explicitamente verifica a força de Chris, apalpando seus braços. Ela olha exclusivamente para a senhora com um olhar que diz claramente: "Você está exagerando, dessa maneira ele vai sacar tudo"

Quem foi sagaz pegou na hora.

A estrutura do roteiro: primeiro nós, depois Chris, depois o clímax

Muito interessante a maneira pela qual o clímax foi construído. É assim que se faz um roteiro memorável. A construção de um clímax fantástico e um próprio clímax de te deixar hipnotizado na cadeira.

O roteiro é construído de maneira a revelar o grande segredo de maneiras diferentes. Primeiro, nós sabemos que Chris está sendo vendido em um leilão para um dos convidados, motivo pela qual toda aquela reunião é montada. É a primeira surpresa que temos.

Depois, Chris descobre o que se passa quando encontra fotos de Rose com diversos namorados passados afro-americanos, sendo dois deles justamente Walter e Georgina. Ficou clara a mensagem.

Já no clímax, entendemos por completo que um procedimento de transplante de cérebro é realizado. Os donos dos corpos são indefinidamente colocados em um estado de hipnose, o que o filme chama de "Sunken Place" que funciona como se fosse o inconsciente e é representado visualmente na cena da hipnose da mãe de Rose com Chris. A icônica imagem que divulga o filme mostra Chris imerso nesse estado, nesse lugar fantasioso produzido pela força da mente.

Os originais podem ver tudo que se passa, mas você é apenas um mero espectador de sua vida, tomada pelo cérebro da pessoa que participou do transplante. Mais pro final sabemos que Walter é na realidade o avô da família Armitage e Georgina é a avó. Um segredo de fato cabeludo.

Por fim, temos a redenção de Chris, que escapa da hipnose para seguir um plano-sequência violentíssimo de vingança, que culmina com uma briga sangrenta com o irmão de Rose para que ele finalmente pudesse passar pela porta. Minutos que prendem a respiração de qualquer um. Grande sequência, brutal.

O alívio cômico

Rod Williams (LilRel Howery)

Para mudar um pouco o clima de tensão desse grande suspense psicológico, temos o personagem de LilRel Howery, Rod. São cenas em paralelo às principais, que se encontram no final do filme. O funcionário da TSA, agência que cuida da segurança em aeroportos nos EUA, é a única esperança que o espectador tem de salvar Chris além dele mesmo. Ele suspeita do pior e começa a bancar o detetive, o que rende cenas engraçadas como a que ninguém acredita nele na delegacia. Por fim, o alívio cômico se mostra importante e um filme com um arco final extremamente tenso e violento termina com uma piada sobre como um agente da TSA deve ser respeitado. Rod foi um personagem interessante, muito bem utilizado.

O saldo final

Corra!(2017)

Corra!(2017) é um suspense/thriller psicológico de primeiríssima qualidade. Revelou um grande roteirista e diretor em Jordan Peele, que agora não mais levantará olhos desconfiados em sua direção e sim olhos curiosos ou de admiração.

Nota triste para o Globo de Ouro que ofendeu e causou revolta a todos envolvidos na produção do filme ao colocar o título para concorrer no gênero de comédia/musical. Um escárnio e um desrespeito com os profissionais envolvidos.

Assim como Chris, ficamos hipnotizados durante o longa inteiro e o filme de quase 2 horas voa. Entretenimento em seu mais puro estado.

Quem não gosta de um bom suspense? São esses os filmes que provocam mais admiração e os que são lembrados com mais facilidade. Os de roteiro original. Os que sabem construir o clímax e entregar um final coerente e satisfatório. Corra!(2017) fez tudo isso e ainda nos presenteou com uma atuação brilhante de Daniel Kaluuya, que com seus grandes olhos expressa tudo o que pode ser expressado. Espero que ele não fique marcado e possa brilhar em muitos outros papéis, tem qualidade para tal.

Passaporte para o "Sunken Place"

Eu ainda não saí do "Sunken Place" e tampouco Corra!(2017) sairá. É um filme que vai permanecer presente em nossa memória, nossa retina. Nosso inconsciente.

--

--

Caio Simão
Água de Salsicha

Crítico de Cinema e apaixonado também por diversos tipos de esportes. É vascaíno fanático e ama o Marvin, seu cachorro. Nas horas vagas, é Engenheiro Químico.