Um filme além das estrelas, do tempo e da cor da pele

Amanda Machado
Água de Salsicha
Published in
5 min readFeb 8, 2017

Após mais de cinquenta anos dos grandes feitos dessas mulheres, finalmente suas histórias foram levadas ao público como motivo de orgulho e inspiração. Os holofotes não são poucos, especialmente após a indicação de Estrelas Além do Tempo à categoria de Melhor Filme no Oscar e a vitória do elenco do filme no SAG Awards.

O filme, baseado em fatos reais, foi adaptado do livro de Margot Lee Shetterly e tem direção e roteiro de Theodore Melf, além de Pharrell Williams como um dos produtores. A história se passa na década de 1960 na Virginia e conta a história de Katherine Johnson, Dorothy Vaughan e Mary Jackson, três mulheres norte-americanas negras que trabalharam na NASA como matemáticas e que sofreram muito preconceito para conseguir espaço em um meio totalmente dominado por homens brancos.

Apesar de ter muitos pontos altos, como dar destaque a figuras importantes que não obtiveram reconhecimento à época de seus feitos e problematizar a política de segregação americana, o filme peca em muitos momentos. Já nos primeiros minutos temos a abordagem de um policial branco racista e machista totalmente caricato, que dissolve seu preconceito contra as protagonistas em segundos, apenas por um ódio maior, os russos comunistas.

Esse não é o único momento do filme em que sentimos que nossa capacidade de interpretação é subestimada. Durante todo o filme o que temos é uma personificação do racismo em determinados sujeitos que tem no roteiro como única função ser o racista particular de uma das protagonistas. É o caso dos personagens vividos por Kirsten Dunst e Jim Parsons, que na vida real sequer existiram. Ambos, sempre que aparecem na tela, representam os obstáculos a serem superados para que elas consigam o reconhecimento que desejam. Obviamente, é de fundamental importância retratar fielmente quão dolorosa e radical era a política de segregação americana, vivenciada inclusive na NASA, mas em muitos momentos esse retrato é feito de forma a não se modelar ao roteiro, de maneira muito forçada.

Ainda que o filme apresente esses clichês que incomodam muito, as situações em que vemos na tela aquele racismo casual tão comum, inclusive, no nosso cotidiano, geram boas reflexões. Como a situação em que a supervisora diz para Katherine não a envergonhar ou quando o chefe não reflete sobre as diferenças de oportunidade entre ele e sua subalterna. São alfinetadas sutis mas que dialogam melhor inclusive com o desfecho dessa situação, quando Katherine protesta veementemente sobre a situação como é tratada em um setor para a qual seu serviço é fundamental.

Sem nenhuma dúvida, a cena em que Mary comparece ao tribunal para solicitar o direito de cursar uma pós-graduação em uma universidade para brancos, é a melhor de todo o filme. Janelle Monáe apresenta sua melhor face e discursa sobre a importância de ser o primeiro, no caso de Mary, a primeira engenheira afro-americana da NASA e somos todos convencidos.

“Toda vez que temos a chance de avançar, eles mudam a posição da linha de chegada.”

No quesito machismo, o longa se sai um pouco melhor, já que garante que a maior parte da conquistas das protagonistas sejam realizadas por elas mesmas. O crédito de aprender programação por si só é de Dorothy, o de conseguir se tornar uma engenheira é de Mary, e até mesmo, o de ter algum crédito por seus feitos, é de Katherine. Porém o protecionismo encarnado no personagem de Kevin Costner incomoda bastante em algumas cenas. A principal delas é a cena em que ele passa o giz a ela, como faz seu professor logo no início do filme. Transmitindo uma mensagem velada de que não é ela que toma seu lugar, mas que é permitido a ela, por um homem, que ela mostre a que veio.

Algo que venho celebrando continuamente em filmes que contam histórias de mulheres é a construção de uma história que não coloca mulheres como inimigas umas das outras, mas que eleva a narrativa ao mostrá-las se apoiando e celebrando até mesmo as pequenas vitórias. Em Estrelas Além do Tempo isso não é diferente. Em nenhum momento as protagonistas inflam seus egos por estarem tendo opções diferentes de trabalho do que suas colegas e até mesmo quando Dorothy Vaughan é reconhecida pelo seu conhecimento em programação e encontra sua supervisora branca, o que vemos é uma mulher que reconhece que a outra tem uma habilidade que ela não possui.

Essa é uma história que precisava ser contada, explorada, conhecida e celebrada. Uma história com um potencial inspirador muito grande e que em tempos de crescimento de discursos de segregação, precisa ser reivindicada. Por isso Estrelas Além do Tempo merece aplausos. Porque dá à três mulheres negras esquecidas pela História, os merecidos créditos pela participação fundamental em alguns dos grandes feitos da sociedade moderna. Mas também porque possibilita que mulheres negras estejam disputando categorias no Oscar por suas fortes atuações.

Mais do que três grandes peças na história da NASA. Mais do que três grandes mulheres em posições nada típicas. Mais do que três mulheres negras em busca de serem ouvidas e consideradas. Que essas senhoras sejam a partir desse lançamento, muito mais que inspiração para meninas que continuam ouvindo por aí que ciência não foi feito para mulher, que sejam motivo de orgulho e de celebração, afinal, podemos ser o que quisermos ser, independente do nosso gênero e da cor da nossa pele, graças a mulheres como essas que nos mostram todo dia que é possível.

“Então, sim, deixam mulheres fazerem coisas na NASA, Sr. Johnson. E não é porque usamos saias. É porque usamos óculos.”

--

--

Amanda Machado
Água de Salsicha

Médica, dançarina, educadora em Projeto Luar de Dança, escritora do quadro Mulheres em Ação na página Água de Salsicha. Sobretudo, feminista!