Mulheres na alta gastronomia

Liana Rangel
Água no Feijão
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10 min readDec 13, 2017

Inicialmente, na comunidade primitiva, a mulher ocupava uma posição de igualdade e mesmo de superioridade em relação ao homem. A importância da mulher deveu-se também à sua condição de criadora, fixadora e transmissora de hábitos culturais, da experiência coletiva acumulada pelo grupo. A passagem à agricultura foi obra das mulheres, assim como a domesticação dos animais (origem da pecuária), a fabricação da cerâmica, a fiação e a tecelagem (linho e algodão), a medicina caseira etc. Além disso, transmitiram esses conhecimentos às novas gerações, fixando e difundindo hábitos culturais. Mas isso foi há muito tempo, não é mesmo?!

Mas comecei a reparar que se falando da alta gastronomia mundial e cozinhas profissionais, a coisa já é bem diferente. Quantas mulheres são as chefs dos melhores restaurantes do mundo? Quando falamos de programas de TV, sem dúvida as mulheres lideram, Julia Child foi uma das pioneiras e até inspirou filme.

Arquivo: Julia Child

Para responder essa pergunta parti para a lista dos 50 melhores restaurantes do mundo de 2017 e fiquei ASSUSTADA. Desde 2002 a revista Restaurant faz esse ranking. Atualmente, eles tem uma lista mundial e duas regionais, além de outros prêmios, um deles é de melhor chef mulher. Então, senta que lá vem textão, pois resolvi pesquisar e contar um pouquinho sobre cada uma dessas minas que metem bronca na cozinha mundial!

Conta daí quantas mulheres no palco? Foto: Paladar

LISTA DOS 50 MELHORES RESTAURANTES DO MUNDO

A seleção da revista britânica Restaurant em 2017 tem apenas duas mulheres na sua listagem dos 50 melhores. O primeiro restaurante que tem uma mulher como chef está na trigésima posição do ranking, o espanhol Arzak. Elena Arzak é sucessora de seu pai, Juan Mari Arzak, chefe de cozinha basco. Ele é considerado o pai do movimento de renovação da cozinha espanhola, mas a delícia é saber que ele aprendeu mesmo a cozinhar com a sua mãe, no restaurante da família aberto pelos seus avós. Elena é da quarta geração e foi criada vendo essa revolução acontecer bem de pertinho. O legado dos Arzak continua e ela sustenta as 3 estrelas Michelin da casa.

Elena Arzak em ação. Foto: Divulgação

Depois, no quadragésimo lugar está o Cosme, comandado pela mexicana Daniela Soto-Innes, o primeiro restaurante fora do México do reconhecido Enrique Olvera, a casa fica em Nova Iorque. Daniela mete tanta bronca que em 2016 foi escolhida como rising star da concorrida James Beard Foundation, afinal ela tem apenas 26 anos. A mexicana foi para os EUA aos 12 anos e começou na cozinha bem cedo, aos 15 anos já era estagiária na cozinha do hotel Marriott, se formou no Le Cordon Bleu College of Culinary Arts em Austin. Mas foi na sua volta pro México que encontrou seu mentor, que a convidou para comandar sua casa em NY.

Daniela Soto-Innes dando língua pra geral! Foto: Divulgação

Os demais da lista são todos liderados por boys. 48×2. É mole?! Bora, continuar?!

50 MELHORES RESTAURANTES DA ASIA

A lista Asiática (lista de 2016) acompanha a mundial com apenas duas mulheres como chefs, a mais bem colocada divide a cozinha e está no décimo nono na lista. O Bo.Lan é um restaurante Tailandês autêntico e moderno em Bangkok, a cozinheira Duangporn Songvisava (Chef Bo) e seu marido Dylan Jones (Chef Lan) comandam em conjunto. Ela foi eleita em 2013 a melhor chef mulher da Ásia, o restaurante se baseia no conceito de Slow Food, usando diferentes ingredientes, respeitando sazonalidades e buscando também uma pegada de zero desperdício.

O casal em ação no Bo.Lan. Foto: Divulgação

Já no vigésimo oitavo lugar, está o Le Moût, liderado pela chef Lanshu Chen em Taiwan, no restaurante francês ela cria sua “Haute Cuisine”, emprega delicados aromas e texturas de fusão entre as culturas de suas raízes taiwanesas e com a culinária francesa. Ela brinca com as especialidades sazonais locais e o que está disponível entre os melhores ingredientes do mundo nesse momento. Sua formação ajuda muito nisso, ela se formou na França no Ferrandi School of Culinary Arts em Paris e numa entrevista contou um pouco da sua história:

“As minhas primeiras experiências culinárias foram em família. Minhas tias estavam constantemente na cozinha. Eu comecei a cozinhar para minha mãe aos 10 anos de idade. A partir disso, passei meus fins de semana (re)lendo livros de receitas, fazendo bolos, sempre para o meus parentes. Assim, a nasceu a minha vocação como chef e também meu desejo de compartilhar isso isso com minha família. Uma grande paixão.” disse Lanshu.

Lanshu Chen no seu restaurante. Foto: Divulgação

De novo, 48×2, tenso, né?! Agora, vamos chegar aqui perto do Brasil?

50 MELHORES RESTAURANTES DA AMÉRICA LATINA

Se tratando da lista dos 50 melhores da América Latina (lista de 2016) a coisa dá uma melhorada, as mulheres latino-americanas tem mais expressão na gastronomia, mas não vai se animando muito, pois estamos falando de 8 manas comandando cozinhas. Vamos combinar é o quadruplo das demais listas, né?! ❤

Helena Rizzo na porta do seu restaurante em São Paulo

Em oitavo lugar temos o Maní, até março desse ano era comandado por uma dupla, a brasileira Helena Rizzo e espanhol Daniel Redondo. Agora, quem assume as panelas sozinha é ela! Duplamente premiada: em 2013 como melhor chef da América Latina e em 2014 a premiação mundial de melhor chef mulher do mundo. Deixou de lado uma jovem e bem-sucedida carreira como modelo, assim como os estudos de arquitetura, para se atirar em sua paixão culinária. Passou por cozinhas no Brasil antes de se aventurar pela Europa, seu grande salto ocorreu ao trabalhar no espanhol Celler de Can Roca. O seu restaurante em São Paulo abriu as portas em 2006, onde os ingredientes brasileiros e as técnicas da cozinha de vanguarda espanhola se misturam. Se quiser conhecer um pouco dela, liga no GNT, ela é uma das mentoras no The Taste Brasil.

A mais recente melhor chef da América Latina é dinamarquesa, Kamilla Seidler. Ela comanda o Gustu, em La Paz. Chegou ao continente latino-americano em 2012 se mudando direto para o Bolívia à convite do também dinamarquês Claus Meyer um dos fundadores, ao lado de René Redzepi, do Noma. Como missão ela tem que incentivar a cena social e gastronômica do país, além de comandar a cozinha. Só trabalha com produtos (tanto comidas como bebidas) 100% bolivianos e isso rendeu a ela um carinhoso apelido: “dane of the Andes” (a dinamarquesa dos Andes). O restaurante já não faz mais parte do projeto de Claus, mas não perdeu sua filosofia e conta, inclusive, com uma escola de cozinha para pessoas carentes.

Kamilla Seidler, a dinamarquesa dos Andes. Foto: Divulgação

Leo Cocina y Cava em Bogotá da colombiana Leonor Espinosa, é o décimo sexto restaurante da lista. Ela adora as tradições gastronômicas da Colombia e combina elas com sabores e técnicas contemporâneas. Hoje, ela está com um projeto que estuda os ingredientes dos biomas colombianos, criou a FUNLEO, a fundação trabalha sob o lema “Food for Development” e busca identificar, recuperar e valorizar as tradições gastronômicas de comunidades colombianas de sua herança biológica, cultural e imaterial, tendendo para o bem-estar, saúde e nutrição.

Leonor Espinosa, valoriza as tradições gastronômicas da Colômbia. Foto: Divulgação

Carolina Bazán, sempre teve as panelas e fogões por perto, cheia de dreads e tatuagens leva o conceito farm-to-table para o Ambrosia, restaurante da sua família, remodelado por ela, é o vigésimo da lista. Bazán trabalhou em restaurantes na Itália, Tailândia, Peru e Brasil, mas foi no Chile que ela se encontrou e construiu um dos melhores restaurantes de Santiago. Graças à sua concentração no desenvolvimento de um cardápio aproveitando a generosidade do terreno fértil do país, a diversidade do clima e os milhares de quilômetros de costa. O menu muda todo dia de acordo com o frescor dos alimentos. Recentemente foi mãe e publicou seu primeiro livro de receitas. ❤

Carolina Bazán, foge dos esteriótipos, né?! Foto: Leclic Estudio

Roberta Sudbrack surpreendeu a todos com o anúncio no começo do ano do fechamento do seu restaurante no Jardim Botânico no Rio de Janeiro. Ela foi a cozinheira oficial do presidente Fernando Henrique Cardoso entre 1996 e 2002. A casa carioca da chef gaúcha foi aberta em 2005, o derradeiro jantar rolou no dia 30/12/2016. Famosa entusiasta do quiabo e ingredientes brasileiros, seu restaurante figurava no vigésimo quinto lugar da lista latino-americana. Agora, no Rio você pode encontrar a chef no Da Roberta e com o seu SudTruck.

Roberta Sudbrack no seu antigo restaurante no Jardim Botânico. Foto: Leo Aversa

O trigésimo quinto da lista era comandado por uma mina até janeiro, o Chila ficou 11 anos sob a regência da Soledad Nardelli. Tive o prazer de comer na casa em 2011 com a minha mãe. A experiência foi incrível, nós não optamos pelo menu degustação, escolhemos duas entradas, dois principais e dividimos uma sobremesa. No couvert haviam uns pães que tive vontade de levar todos pra casa. Ela tem 38 anos, nasceu em Buenos Aires, é embaixadora da cozinha argentina no mundo. Descobri que ela dá umas aulas de culinária, imagina? Ir pra Buenos e ter uma aula com essa mina que mete bronca? KERO. ❤

Delicadeza da Soledad Nardelli. Foto: Divulgação

Na quadragésima oitava está o restaurante de um hotel chique no último, inspirado na Frida Khalo. Fiquei um tico confusa com esse conceito, confesso, mas quem chefia as panelas no Dulce Pátria é a Martha Ortiz. Sua especialidade é uma culinária mexicana moderna, não é a toa que o prato assinatura é um mole rosa, mais feminino impossível, né?!

Martha Ortiz e sua cozinha super feminina inspirada na Frida Khalo.

PRÊMIO MELHOR CHEF MULHER

Em 2011, a revista Restaurant criou o título de melhor chef mulher do mundo. Essa mesma premiação também se desdobra pra América Latina e Ásia. Premiando mulheres que muitas vezes não estão na lista 50 melhores restaurantes.

Máximo respeito a Anne-Sophie Pic. Foto: Divulgação

Só pra vocês entenderem um pouco quem já ganhou: a primeira foi a francesa Anne-Sophie Pic, ela só foi a primeira mulher a ganhar estrela Michelin e óbvio que foi a primeira a ganhar esse prêmio. A linha sucessória foi exemplar, só premiando as manas cascas grossas.

Nadia Santini com seu filho na cozinha. Foto: Divulgação

Em 2012, o título foi pra Elena Arzak, a espanhola já foi citada lá em cima, pois o Arzak tá na lista dos melhores restaurantes do mundo. Depois veio, Nadia Santini, a italiana foi a primeira mulher na Itália a ganhar a terceira estrela Michelin. Pro nosso orgulho em 2014 quem ganhou foi a brasileira Helena Rizzo. ❤

Hélène Darroze em ação. Foto: Divulgação

Em 2015 foi a vez da francesa Hélène Darroze, ela só inspirou a personagem Collete do filme Ratatouille. Já em 2016, a também francesa Dominique Crenn, ficou com o título, ela tem um restaurante BAFÃO em São Francisco. Falando desse ano, o título tá na mão da eslovena Ana Roš, quem tem uma linha de cozinha que é uma poesia. Essas duas últimas ganhadoras também estão nas temporadas de Chef’s Table, serie documental da Netflix. Apesar dos títulos e das cozinhas premiadas nenhum dos restaurantes das melhores chefe mulheres figura entre os 50 melhores do mundo.

Dominique Crenn no seu Atelier Crenn. Foto: Divulgação

Mas nem todo mundo concorda com a existência do prêmio, a editora chefe da revista Eater, Amanda Kludt, criticou o fato de existir essa premiação exclusiva para mulheres, uma vez que a mesma não segue a lista de melhores restaurantes e sim premia uma mulher que venha se destacando no mercado. Em sua crítica ela diz que as mulheres não são de outra espécie, que são humanas, ela espera que a premiação se torne obsoleta.

Ana Roš eslovena que vem mudando os eixos da gastronomia. Foto: divulgação

E AÍ?! O QUE FAZEMOS?!

Temos que valorizar e prestar atenção. Outro dia, em São Paulo, no mercado de Pinheiros tive uma grata supresa, apesar da Comedoria Gonzales ser comandada pelo chef boliviano Checho Gonzales, no serviço, em todas as praças, as mulheres que estavam no comando. Me surpreendi também com a deliciosa comida da Talitha Barros da Conceição Discos. Essa visita vale um post. ❤

No meu ponto de vista toda a valorização feminina é necessária, não que as mulheres não tenham espaço na gastronomia, mas vamos combinar que as estatísticas são assustadoras, não? 48×2 no mundo?

Tem que ter prêmio, destaque e tudo mais pras minas!

E nem pesquisei a média de salários pagos, pois se formos ver isso acho que vai dar vontade de chorar, não é mesmo?! Sei que isso é muito comum em todas as profissões. Por isso, ao longo desse meu processo de envolvimento com esse percebi que temos cozinheiras maravilhosas e elas precisam galgar novos postos.

Mas se é a mulher que tem o poder de dar a vida, quem melhor pra criar comida?! Pura alma, não?! Pense nisso.

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