Jânio, Collor e Temer

Palavras escritas e narrativas ardilosas

Italo Alves
Égide
4 min readJun 25, 2017

--

Tenho sentido alguma compaixão por Michel Temer recentemente, quando o vejo discursando. Sem nenhuma ironia. Tem algo nele que me faz lembrar das duas figuras políticas brasileiras que mais me comovem: Jânio da Silva Quadros e Fernando Collor de Mello. Duas figuras concentrando muito poder — presidentes da República, afinal –, no foco da atenção de todo um país, e que acabaram, por fim, desmoronando. Não só politicamente, por terem ambos deixado o cargo, mas também, e aqui deduzo eu, pessoalmente.

Os dois tinham um comportamento público explosivo, espalhafatoso, discurso sempre enfático, dedinhos muitas vezes em riste, um domínio abusivo da norma culta — e isso compartilham com Temer: falar o português escrito. E atrás disso tudo, a fisionomia de cada um deles sempre desvelou um profundo desamparo e solidão. Características bem comuns, se pensarmos no que diz nossa memória cultural, de quem é obrigado a lidar com uma quantidade de poder maior do que suporta.

Jânio estampava a fragilidade na cara: magro, estrábico, óculos de aros grossos, cabelo ralo. Dá para quase sentir o terror que deve ter sido a pressão dos militares para que renunciasse. As pernas que tremeram. O pavor que impede o sono por dias. Nesse que é um dos textos mais pungentes da história da república, sua carta de renúncia, Jânio fala nas famigeradas “forças terríveis”:

Sinto-me, porém, esmagado. Forças terríveis levantam-se contra mim e me intrigam ou infamam, até com a desculpa de colaboração. Se permanecesse, não manteria a confiança e a tranquilidade, ora quebradas […].

Um dia após renunciar à presidência, Jânio Quadros despacha no gabinete do Horto Florestal, em Brasília. 28 de agosto de 1961 (Agência O Globo).

As palavras soam até engraçadas se partimos de um olhar informado pela distância temporal e, se for o caso, adversidade política, mas apontam para um drama pessoal, que comove pela universalidade: o desígnio humano vigoroso que é tolhido por uma força maior, transcendental, insuperável. Podia ser qualquer um de nós. E muitas vezes é.

Em comum com Temer, Jânio também foi escritor. E também em comum, escreviam muito mal. Jânio preferia contos; Temer, poemas. O uso obsessivo, e portanto chato, da gramática prescritiva, que talvez funcione no discurso político, é um dos vários atravancamentos nos textos de ambos. O eu-lírico do poema de Temer, ao contrário de qualquer indivíduo em qualquer tempo, diz coisas como “Não teria sido mais útil silenciar?/ Deixar que saibam-te pelo que parece que és?”. Já nos muitos diálogos dos contos de Jânio, as personagens falam, além do travessão, usando aspas, prática bastante peculiar que talvez tenha morrido junto com o século XX.

Piadas à parte, o fato de serem maus escritores não importa tanto quanto o de serem escritores. Se escreviam algo, era porque tinham algo a dizer. Sobretudo numa forma “inútil”, como a literatura e poesia (parafraseando o Brian Eno, algo é tanto mais cultural quanto menos for, literalmente falando, útil para nossa sobrevivência). Por mais que a poesia do Temer seja risível, por causa de ironia na temática (quando fala em “desistir”, por exemplo, remetendo a uma possível renúncia neste momento), pela pobreza lírica ou pelas soluções óbvias demais, dá para ver atrás do texto um sofrimento primitivo que o empurrou a escrever. Talvez seja mesmo o sofrimento o combustível da criação, em todo caso.

Mas não são as obras poéticas desses três sujeitos que mais interessam, mas seus textos enquanto presidentes. Talvez até mais retumbante que a carta-renúncia do Jânio é a carta-renúncia de Collor. Foi escrita horas antes do julgamento de seu processo de impeachment. Do julgamento, porém, restou que a carta não tinha validade alguma, e não serviria para registro de renúncia por parte de Collor. Oficialmente, Collor foi impedido. O texto é lacônico:

Excelentíssimo senhor presidente do congresso nacional: Levo ao conhecimento de vossa excelência que, nesta data, e por este instrumento, renuncio ao mandato de presidente da república, para qual fui eleito por pleito de 15 de novembro e 17 de dezembro de 1989. Brasília, dia 29 de Dezembro de 1992.
F. Collor.

A assinatura de Collor, na carta escrita à mão em um papel timbrado, está sublinhada. Encontra-se foto na internet. Collor assinou o nome e, embaixo, fez um risco grande. Se por convicção ou fragilidade, podemos deixar nossas imaginações voarem um pouco.

Completando o trio, cuja afinidade é exterior e em certa medida eletiva, não pode-se deixar de mencionar a carta de Temer a Dilma, do fim de 2015, que, por motivos que neste momento são bastante evidentes, mantém-se bem vívida na nossa memória. “Verba volant, scripta manent”, afinal.

Tudo bem, tudo é político — é difícil pensar em qualquer um desses senhores sem considerar a sociedade e as instituições que os cercaram. Mas nem tudo é *apenas* político. E nesses três casos há um patente elemento poético, narrativo, dramático. Histórias parecidas de um aparato performativo robusto — as sobrancelhas arqueadas de Collor, as mãos pequenas, lépidas, de Temer — que ao mesmo tempo encobrem e revelam uma subjetividade frágil, isolada, solitária, conturbada, numa batalha contra moinhos de vento com diversos graus de realidade.

Jânio, Collor e Temer enfeixam, cada um à sua maneira, uma trama pessoal ardilosa, complicada e imprevisível — por isso tão atraentes e dignas de empatia ou compaixão. São três personagens peculiares, mas que carregam um enredo com aspirações universais, difíceis e muitas vezes idiossincráticas. Estão distantes, eu penso, de figuras como Lula, ou Brizola, que representam a típica jornada do herói: uma figura maculada pelas condições desfavoráveis de sua origem, que vence obstáculo sobre obstáculo e salva o mundo no fim do dia. O trio desgraçado de Jânio, Collor e Temer foge do mito do herói, mas nem por isso cai facilmente no estereótipo do vilão. São figuras complexas, e por isso interessantes. Se Lula e Brizola são blockbuster, Jânio, Collor e Temer são tragédia grega.

--

--