Mênade Moralizada

As origens pagãs da iconografia política de Maria Madalena

Italo Alves
Égide
16 min readJun 22, 2019

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Introdução

As representações de Maria Madalena são várias — os ensaios deste volume comprovam. Personagem elástica, sua imagem já foi usada como símbolo tanto da prostituta pecadora quanto da santa penitente — e, ainda mais frequentemente, desses dois lados ao mesmo tempo. Por trás desses usos, frequentemente há ideias em jogo: concepções políticas, propostas de normatização social. Para chegarmos até elas, o estudo detido das muitas formas de representar Maria Madalena pode ser útil. Neste curto ensaio, quero apresentar, sem compromisso cronológico, um passeio sobre as representações da figura de Maria Madalena na arte renascentista, barroca e rococó, buscando chamar atenção para os fins morais e políticos com que é apresentada a depender do contexto, assim como para o resgate de figuras pagãs que está em jogo nas opções representativas de Madalena.

A opção por passear por esse contexto específico de produção artística não é acidental. A instauração de um protossistema da arte no quattrocento, principalmente nos polos produtores de obra de arte em Florença e em Flandres, fez com que se tornasse possível enxergar obras de arte, nas palavras de Michel Baxandall, como “testemunhos de uma relação social”. É bem verdade que está em jogo, no Renascimento, uma série de revoluções propriamente estéticas: nasce ali, por exemplo, um novo realismo, que durante a Idade Média permanecia escuso em representações altamente esquematizadas, cristalizada, por exemplo, na iconografia bizantina; nasce também o conflito entre a representação do real com a representação do belo (que, dado que o belo nem sempre é real, e que o real nem sempre é belo, permanecerá sendo um problema por um bom tempo). Mas nasce também uma nova forma de produzir, circular e consumir obras de arte.

Num cenário medieval, não é possível falar em “obras de arte” sem localizá-las num contexto de domínio da Igreja Católica. Até o século XIV, era difícil falar de objetos estéticos que não fossem também, e sobretudo, objetos de uso. A arte servia à Igreja — por ela era encomendada e a ela se destinava. Os murais representando a via crucis nas paredes de uma catedral, por exemplo, possuíam um fim pedagógico; serviam para contar uma história, e eram admirados pela sua força simbólica. O mesmo se pode dizer de esculturas ou miniaturas; se não encomendadas pela Igreja, eram adquiridas por membros da aristocracia e doados à Igreja. A obra de arte ligava-se, pelo menos num dos lados, à Igreja.

No começo do século XV, há um novo período de prosperidade econômica na Europa. Depois de abalos sociais como a crise econômica do século XIV e a peste bubônica, Florença, no início do século XV, volta a prosperar economicamente. Surgia, no rescaldo desse cenário econômico, ao mesmo tempo, uma vontade de tornar Florença uma nova Atenas, e uma necessidade da burguesia ascendente de ostentar publicamente sua nova afluência. Esta nova configuração sociopolítica fez com que as dinâmicas de produção, circulação e consumo de obras de arte se alterassem. Se na Idade Média a relação normalmente resumia-se à Igreja encomendando obras para uso simbólico em seus templos, a dinâmica agora era outra. No Renascimento florentino, adquire cada vez mais centralidade o papel do mecenas, a pessoa rica que comprava obras de arte e doava à Igreja. Posteriormente, essa relação de mecenato adquire também funções “privadas”: não só como doação, a encomenda e compra de obras de arte passava a servir para fruição estética de seu dono.

A encomenda de uma pintura, nesse cenário, passava por intensa discussão entre pintor e cliente, e o resultado final refletia não só o gênio individual do pintor, mas também as disposições do cânone e, acima de tudo, os detalhes da encomenda. As vontades do cliente, formais e simbólicas, eram comumente gravadas em contratos assinados por ele e pelo pintor. Esses contratos normalmente especificavam o que o pintor devia pintar, indicavam como e quando o cliente deveria pagar, e determinavam quando o pintor deveria entregar o quadro. Pra usar o termo de Baxandall, uma pintura renascentista, por esse motivo, serve de “fóssil” da vida econômica e social do contexto onde foi produzida. Olhando para essas pinturas — eu gostaria de sugerir — somos capazes de identificar configurações sociais, opções políticas, estéticas, cânones vigentes, enfim, as sociedades e os indivíduos que delas estão por trás.

Histórias de imagens, ou imagens com história

Esta pesquisa foi teoricamente informada pelo trabalho de Aby Warburg, historiador alemão do fim do século XIX especialmente dedicado ao estudo da influência do paganismo antigo na produção artística do Renascimento florentino. Warburg cunhou o conceito de “Pathosformeln”, ou “fórmula de pathos”, para definir o as cargas emocionais (de onde pathos) presentes de forma “encriptada” em formas iconográficas reproduzidas historicamente. O conceito nos interessa especialmente. Pathosformeln são figuras que cristalizam sentimentos humanos inerentes à psique humana e que preservam uma forma mais ou menos consistente com o passar dos anos, mesmo que o seu sentido seja radicalmente alterado.

Um exemplo ilustrativo de algo parecido (parecido porque o exemplo diz respeito não a uma carga emocional/patética, mas a um item mais genérico da nossa memória cultural) são as saboneteiras em formato de concha marinha.

Saboneteira em formato de concha

Aparentemente inofensivas, saboneteiras nesse formato podem ser encontradas em qualquer loja de artefatos domésticos e podem ser tomadas pelo espectador passivo como apenas mais um formato de saboneteira. No entanto, possuem uma história muito própria. Para a mitologia greco-romana, Vênus, ou Afrodite, a deusa do amor, do desejo e da sexualidade, nasce da espuma do mar. E é carregada, acompanhada dos erotes (as figuras que parecem pequenos anjos, um de cada lado de Vênus, na abaixo) até a terra.

Afresco de Vênus, Pompeia, c. século I a.C.

Essa configuração imagética da mitologia antiga teve possivelmente seu resgate mais conhecido com O Nascimento de Vênus, de Botticelli. A produção pictórica renascentista, embora pesadamente informada pela iconografia cristã, mostra vários exemplos da retomada de um interesse pelo paganismo antigo. Neste quadro de Botticelli, Vênus é representada como o ideal de beleza feminina, cobrindo os seios e o sexo com mãos e cabelo. À esquerda, Zéfiro e Aura, representando o vento e a brisa que carregaram Vênus do mar até a costa. À direita, Flora, a hora da primavera, recebendo Vênus com um manto.

Botticelli, O Nascimento de Vênus, c. 1486

O que é particularmente interessante na história toda — e o que liga ao tema da saboneteira — é que, enquanto Vênus era conduzida dentro da concha, acompanhada de seus erotes, a história diz que ela teria passado o tempo fazendo nada menos que sua toalete. O retrato de mulheres em suas toilettes se tornaria um tema comum pelo menos até o rococó. Na pintura de François Boucher intitulada A Toalete de Vênus, de 1751, Vênus é representada durante sua toalete, ritual ligado às ideias genéricas da beleza e do embelezamento feminino.

François Boucher, A Toalete de Vênus, 1751

A obra foi encomenda a uma cortesã de Louis XV para uso em seu banheiro. Na pintura, Vênus, cercada de erotes, tem em suas mãos e seus pés pombas, símbolos de seu erotismo pagão (antes de serem apropriadas pela iconografia cristã como símbolo de Maria, a mãe de Jesus). O erote do quadrante inferior esquerdo despeja jóias — colares de pérola — sobre isto que nos interessa no exemplo: uma concha. Já no fim do século XIX, com o avanço da produção em larga escala de utensílios para uso doméstico, a concha, que permanecia de certa forma presente na memória cultural como representante da toalete de Vênus, adquire mais uma forma representativa. Com a massificação oportunizada pela produção em série, os signos relativamente abstratos de toalete, limpeza, banheiro, conchas, feminilidade juntam-se numa configuração nova, mas que guarda uma história antiga.

As imagens, em suas formas, esquemas, texturas e configurações, possuem história, e podem ajudar a iluminar elementos culturais e sociais dos contextos nos quais foram gestadas. Assim como as Pathosformeln de Warburg, que ajudam a explicar como a tradição pagã antiga foi totalmente apropriava, revirada e recontada através de novos usos para marcadores emocionais/patéticos antigos na arte renascentista, aqui vale a pena trazer à discussão o conceito de “iconografia política”, de um — se quisermos chamar assim — “seguidor” de Warburg, o historiador italiano Carlo Ginzburg. Em Medo, Reverência, Terror, Ginzburg busca investigar, em quatro ensaios, elementos de iconografias políticas presentes, respectivamente, no frontispício de Leviatã, de Hobbes; na pintura de Jacques-Louis David de Jean-Paul Marat, de 1973; na propaganda britânica Britons: We Want You, da Primeira Guerra Mundial; e, por fim, de Guernica, de Picasso.

Para entendermos o que está em jogo com a iconografia política de Ginzburg, vale retomar o significado de iconografia. Iconografia, da forma como é geralmente aceita, diz respeito à escritura da imagem, ou do ícone; o ícone, por sua vez, é a representação em imagem de um significado. A iconografia, portanto, está interessada em identificar os significados presentes em representações imagéticas. A apreciação da arte, vale dizer, por muito tempo foi predominantemente iconográfica, ou pelo menos “simbólica”, se não quisermos chegar a um nível reflexivo. A apreciação da obra de arte pelos seus caracteres mais plásticos é muito mais recente, e talvez tenha nascido com o modernismo da virada do século XIX para o XX. Essa investigação iconográfica que Ginzburg propõe entende que as imagens, além de serem veículos de conteúdos patéticos, emocionais, como defendia Warburg, também são veículos de logoi, de ideias: ideias sociais, políticas, e assim por diante. Através de imagens, podemos acessar concepções de mundo, por exemplo, ou ideias políticas que de outra formam não se mostram tão claramente.

Isso não significa dizer que o contexto social e político de produção de obras de arte, ou objetos estéticos, seja a determinação última de toda a produção artística. Esta, inclusive, é uma concepção um tanto ultrapassada nisso que se chama “história social da arte”, simbolizada, possivelmente, por nomes como o de Arnold Hauser, que, com o seu História Social da Literatura e da Arte, buscava reduzir o objeto singular a mera unidade determinada pelo modo de produção do tempo e espaço que o produziram. Ao contrário desse determinismo, a proposta de Ginzburg é muito mais sutil: busca apenas olhar para a imagem com o interesse de identificar nela elementos lógicos (ou, melhor dizendo, ideológicos, ou linguísticos, para ficar na mesma nuvem semântica) que possam estar mais ou menos encriptados pela distância temporal ou geográfica.

Esquemas representativos

Maria Madalena, em suas múltiplas representações, se mostra como uma figura extremamente propícia para uma análise a partir das ferramentas da iconografia política. Uma personagem que era santa, mas também pecadora, que encerra várias histórias diferentes de mulheres que aparecem de vários testamentos, e que representa bem, dado o recorte histórico que apresentamos, as duas grandes forças que estavam em jogo na pintura durante o Renascimento: a ainda forte influência da igreja, que via agora seus motivos com uma forma “modernizada”, e o interesse crescente, principalmente entre a elite, no resgate da antiguidade clássica com seus temas pagãos. A mistura entre paganismo e religião, êxtase e pudor, fazem de Maria Madalena uma personagem extremamente flexível enquanto veículo de comunicação de significados. É para esses significados que olharemos aqui.

À esquerda, ilustração em pergaminho inglês, c. 1500. À direita, Andrea Solari, Maria Madalena, c. 1524

Na história da arte, a figura de Maria Madalena aparece normalmente obedecendo a quatro esquemas representativos relativamente rígidos. Primeiro, o episódio da Unção de Cristo (imagens acima), onde Madalena pode ser figurada tanto próxima à ceia, ungindo os pés de Cristo com seu cabelo, ou em formas mais esquemáticas, onde aparece quase como no formato moderno do retrato, onde é salientado o unguento e os demais signos iconográficos que lhe são próprios.

Correggio, Noli me Tangere, c. 1523

Em segundo lugar, o Noli me Tangere, ou Não me Toque (imagem acima), que retrata o episódio em que Maria Madalena observa, como primeira testemunha, a ressurreição de Cristo. Cristo se vira a Maria, na posição de pecadora, e faz um gesto para que se afaste, sugerindo uma recusa genérica do pecado. Na pintura de Correggio, o gesto duplo de Cristo, que lembra um passo de disco-dancing dos anos 1970, ao mesmo tempo afasta Maria Madalena do corpo de Cristo ressuscitado, com o braço direito, e, com o braço esquerdo apontando para cima, indica uma elevação, transcendência ou pureza espiritual.

Quentin Matsys, Crucificação, c. 1515

Em terceiro lugar, a cena da Crucificação (acima), onde Cristo aparece na cruz enquanto Madalena é representada em posição e com expressão de lamento. O pintor flamengo Matsys, em sua representação do episódio bíblico, retrata Cristo ao centro, crucificado, a Virgem Maria e João Evangelista à esquerda, Maria Madalena agarrada aos pés da cruz, demonstrando lamento e desespero, e outras duas Marias à direita, também em posição de lamento. Essas duas outras Marias são mencionadas em outros episódios bíblicos, e suas identidades não são tão claras, sendo às vezes intercambiáveis.

Caravaggio, Madalena Penitente, c. 1595

Por fim, a representação de Maria Madalena como Pecadora Arrependida, onde aparece, como na pintura de Caravaggio, acima, normalmente isolada e carregando expressões de penitência pelos seus pecados. A Madalena Penitente de Caravaggio carrega o que poderíamos apontar como ícones típicos da representação pictórica de Maria Madalena. São quatro os elementos principais dos quais fala o evangelho de Lucas, quando discorre sobre a pecadora que vem ungir os pés de Cristo numa ceia. Cristo está tendo uma ceia quando uma mulher, apresentada como pecadora, chega e lava seus pés com lágrimas, seca-os e unge-os com perfume. Portanto: (i) jarro de perfume, (ii) ênfase nos cabelos, (iii) choro e (iv) a ideia de uma mulher pecadora. (Vale apontar, a título de nota, que não é do texto bíblico a figura de Maria Madalena como prostituta. Essa imagem constituiu-se principalmente na Galileia romana a partir do século I da nossa era).

Somados os quatro esquemas representativos (Unção de Cristo, Noli me Tangere, Crucificação e Pecadora Arrependida) com os quatro elementos principais da representação pictórica da figura de Madalena (o perfume/unguento, os cabelos, o choro e o pecado), temos um pano de fundo sobre o qual a história das representações de Madalena se assentam. Veremos, agora, dois “estudos de caso”, duas amostras, de contextos diferentes, de como essa figura extremamente flexível pode ser apropriada e significada de formas bastante distintas. No primeiro caso, uma semelhança entre uma certa representação de Madalena e a iconografia das mênades, ou bacantes, as mulheres membros do culto de Dioniso, ou Baco, apontada por Warburg como uma típica fórmula de páthos que sobreviveu em contextos e com fins completamente distintos dos de seu início. No segundo, um outro reaparecimento pagão na imagem de Madalena, desta vez em um “folheto moralizante” do fim do século XVI.

A Mênade Madalena

Aby Warburg propunha que a emocionalidade, a carga patética de esquemas representativos, poderia servir como terceiro vetor de análise da história da arte, além das tradicionais forma e conteúdo. E defendia que tais cargas emocionais seriam transportadas pelo tempo e pelo espaço, aparecendo, por vezes, em contextos muito diferentes daqueles de onde surgiram. Aqui olharemos para um desses casos. Ao analisar um relevo de Giovanni di Bertoldo, abaixo, vemos, como figura central, Cristo crucificado. Ao seu lado, dois ladrões. Abaixo, aos pés de Cristo, várias pessoas — as mais próximas, Maria Madalena, a Virgem e João Evangelista.

Giovanni di Bertoldo, Crucificação, c. 1475

É interessante atentarmos para as opções de representação da figura de Maria Madalena neste relevo. Madalena aparece de peito nu, com pernas descobertas, cabelo esvoaçante, curvada para trás, cabeça olhando para o alto e encostando no chão apenas a ponta dos pés. A posição, com todos esses detalhes, em princípio busca mostrar o sofrimento do luto de Maria, causado pela crucificação de Cristo. Uma dor tamanha lhe impõe uma posição de extremo lamento, transfigurado fisicamente na sua expressão corporal. É curioso notar, porém, como essa configuração é semelhante — se não idêntica — a toda história da representação das mênades, ou bacantes: braços e corpo inclinados para trás, peito nu, porém estas demonstrando não uma extrema dor, mas um extremo gozo e uma extrema sensualidade.

À esquerda, detalhe de Giovanni di Bertoldo, Crucificação, c. 1475, mostrando Maria Madalena. À direita, uma mênade, detalhe de vaso grego (invertida horizontalmente)

As mênades (na mitologia grega), ou bacantes (na romana), eram jovens mulheres virgens, ninfas da montanha de Nysa. Eram mulheres que se envolviam em transes ecstáticos induzidos pela dança e pelo vinho, entusiasmadas pelo próprio Dioniso, ou Baco. O frenesi das mênades não era apenas de estímulo sexual, mas de êxtase: uma inspiração divina que parecia lhes deixar em um estado além das próprias sensações físicas. Para as seguidoras de Dioniso, o extremo prazer sexual e uma relação hipnotizante com o divino não eram coisas opostas, mas complementares.

Isso nos leva para a ideia de que o que está representando Madalena, no relevo de Bertoldo, tenha claramente um significado diferente, oriundo de uma oposição binária introduzida pelo cristianismo, mas que conserva a mesma intensidade da forma esquemática já consagrada na arte antiga para a representação de uma reação ecstática com o divino. Isto é, conserva-se a carga emocional, embora altere-se à forma e o conteúdo.

Montagem com detalhes do relevo de Bertoldo mostrando Maria Madalena e relevo romano do século I d.C. mostrando uma bacante

Se comparamos o detalhe do relevo de Maria Madalena com um relevo romano que representa uma bacante em ritual, a semelhança pode ficar maior. No relevo da bacante, fica mais clara a cabeça inclinada para trás, sinal claro de entrega a uma experiência intensa e entusiástica, quase inebriante, assim como os pés que repousam na ponta, indicando quase uma flutuação. No caso de Maria Madalena, essa experiência intensa traduz-se num imenso pesar pela morte de Cristo. Gestos idênticos, ou pelo menos muito parecidos, presentes na memória cultural, são resgatados para representar sensações praticamente opostas. O gesto de Madalena, embora não sejam o mesmo de um êxtase menádico, também não está lá como mera coincidência, ou mera opção artística, mas guarda em suas raízes uma memória emocional muito clara.

Vênus moralizada

Nosso segundo caso de estudo, este explorado por Rachel Geschwind, diz respeito aos folhetos populares (stampe popolare) difundidos nos séculos XVI e XVII na região da Península Itálica. Esses panfletos, que podiam ser de ordem religiosa ou secular, mas que carregavam sempre mensagens “moralizantes”, circulavam de forma muito mais célere do que pinturas, por um lado, ou livros, por outro, e serviam como veículo para difusão de ideias. A relevância desse material impresso, portanto, aumentava nesse período: Nas palavras de Geschwind: “o início do período moderno representa uma era distinta em que o papel dos trabalhos impressos começa a influenciar substancialmente a opinião pública e os valores sociais. A impressão, particularmente na forma de folhetos narrativos e moralizantes, emergia como o principal método de autovalorização e autorrepresentação. Conforme os índices de alfabetização aumentavam, o aumento na produção de folhetos religiosos era ligado ao aumento na crença da alfabetização como um passo na direção da salvação”.

Ticiano, Madalena Penitente, 1533

Simultaneamente, imagens de Madalena como pecadora arrependida, como na pintura de Ticiano, acima, começavam a se popularizar. O que acontecia no século XV pela região do que é hoje a Itália era um aumento no número de prostitutas, motivado pela alta proporção de homens em relação a mulheres nas grandes cidades italianas, assim como por cortesãs, em cidades como Veneza e Roma, serem atrativos turísticos. O status da prostituta, à época, vacilava entre a celebração pública e a condenação pelo pecado, e a atividade existia tanto entre as classes mais baixas quanto as mais altas (aquelas chamadas meretrici; estas, cortigiane). O aumento no número de prostitutas nessa época também encontra correlação com o aumento da pobreza nas cidades, um fator tradicionalmente ligado à escalada da atividade de prostituição. Neste cenário, de aumento de prostituição, condenação pela Igreja e tentativas de controle social da atividade, sobretudo após a Contrarreforma iniciada em 1545, nada parecia mais adequado para dissuasão das prostitutas do que apontar para o caminho de Maria Madalena: uma mulher que pecou, mas que acabou arrependendo-se e redimindo-se de seus pecados.

No início do século XVI houve uma epidemia de sífilis pela região da Itália, que acabou sendo alvo duro dos Reformadores, que também, assim como a Igreja Católica, condenavam a prostituição, e viam nela a causa principal do surto. Os reformadores, então — que, vale lembrar, possuíam algumas posições mais conservadoras do que as da Igreja Católica à época — se punham a lançar uma campanha para acabar com a prostituição. Essa empreitada moral acabou falhando por vias legislativas, o que levou os reformadores a apelarem principalmente aos âmbitos moral e religioso. Isso influencia a feitura de imagens de Madalena — personagem flexível, prostituta, já associada à imagem da pecadora que se arrepende e se converte. Essa campanha se concretiza, por exemplo, na confecção de panfletos moralizantes como o da figura abaixo. Folhetos como esses eram de fácil acesso, sendo vendidos e distribuídos para entretenimento em bodegas e lugares com circulação de público.

Frontispício do folheto A conversão de Santa Maria Madalena, de Marco Rossiglio

O que nos interessa neste folheto é, novamente, a forma específica com que é representada a figura de Maria Madalena em seu frontispício, e a forma com que essa retomada do tema da pecadora arrependida para lidar com o problema da prostituição resgata, novamente, ícones pagãos. Ao compararmos a Madalena Penitente de Ticiano, um símbolo da força da fé cristã na expiação do pecado da mulher arrependida, com o Nascimento de Vênus, de Botticelli, a representação do ideal pagão de beleza e sexualidade feminino, podemos ver que praticamente os mesmos traços representativos estão em jogo, com diferenças apenas sutis. Ambas aparecem com cabelos longos, seios à mostra, com braços em posições praticamente idênticas — o esquerdo cobrindo o sexo, com os cabelos, e o direito cobrindo parcialmente o peito. O principal elemento distintivo da representação de Madalena é o vaso de unguento, que repousa no canto inferior esquerdo do quadro, quase como uma adição posterior à composição.

Detalhes da Madalena Penitente, de Ticiano, e do Nascimento de Vênus, de Botticelli

Esse mesmo esquema representativo, quando voltamos ao frontispício do folheto moralizante, aparece novamente de forma quase idêntica (Figura 17). Vemos na figura de Madalena, se invertermos a pintura de Botticelli, praticamente uma cópia da figura pagã de Vênus, mimetizando a mesma posição corporal, dos braços e do rosto, modificada apenas pela inclusão da auréola. Um esquema pagão que retorna, aqui, num corpo cristão.

Detalhes do frontispício do folheto moralizante e de O Nascimento de Vênus, de Botticelli, este com a imagem invertida horizontalmente

Com esses dois exemplos, que são de fácil exposição (difícil é não ver as relações entre o paganismo clássico e a representação da figura cristã em ambos os casos), busquei mostrar, de maneira indireta, duas teses. A primeira, que não é minha, de que a representação de ícones possui história, que pode ser traçada através de investigação iconográfica, A segunda, mais específica, de que a figura de Maria Madalena é extremamente flexível em significação, o que deu margem, historicamente, para que sua imagem fosse usada de diversas formas e com diversos fins, e não coincidentemente resgatando um passado que a primeira vista lhe pareceria totalmente adverso.

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