O novo camp

Ou, a lógica cultural do zoomerismo tardio

Italo Alves
Égide
12 min readJun 26, 2020

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Recentemente, esbocei um gráfico em que distingui práticas e objetos culturais que são mais típicos do que eu chamei de millenialismo e mais típicos do que chamei de zoomerismo, me referindo, obviamente, às gerações de millenials e zoomers. É uma distinção que tem mais a ver com aspirações e referências culturais do que apenas um registro cronológico de nascimento.

O gráfico funciona numa oposição mais ou menos binária entre comportamentos, práticas e objetos que são mais próprios de uma sensibilidade millenial e mais próximos de uma sensibilidade zoomer. No tocante a formas de recepção de textos ou de objetos culturais, o quadro era o seguinte. Do lado millenial, a oposição entre nova sinceridade e ironia; do lado zoomer, não se tratava de uma oposição, mas de uma organização tripla entre o que chamei de sinceridade sincera, ironia irônica e, no centro, o “novo camp”. Aqui, gostaria de expandir um pouco o que entendo por novo camp. É uma primeira hipótese, e com certeza partes dela podem ser muito mais bem desenvolvidas com discursos específicos da literatura ou da história cultural. Quem deles dispor, então, está convidado a contribuir.

Esse esquema triplo é uma tentativa minha de entender uma fórmula que me parece mais típica da geração zoomer de produzir, circular e receber textos. (Textos aqui tem o sentido de objetos culturais de forma mais genérica, para usar o jargão da sociologia interpretativa dos anos 1960). Minha impressão é de que há uma forma que pode ser mais ou menos delimitada ou tipificada de compreensão de textos, e que me parece cada vez mais comum, que não é uma simples acepção do texto pelo seu valor nominal, seu face value; não é uma simples sinceridade, mas também não é apenas uma recepção irônica, ou um mero sarcasmo. É algo um pouco mais complexo.

Para contextualizar: os termos são esses porque eu acho que são essas as formas de compreensão de textos relativamente hegemônicas, ou pelo menos hegemônicas num contexto de internet millenial (o que não significa obviamente que elas são as únicas, nem que são estáticas). De um lado, a ironia pós-modernista dos anos 1980 e, logo depois, a nova sinceridade dos anos 1990. Quero aqui desdobrar o que entendo por cada uma dessas coisas e tentar explicar por que eu acho que elas são relevantes.

You really think someone would do that——just go on the internet and tell lies?

Pós-modernismo

Primeiro, um excurso. Acho que vale a pena explicar que não é muito fácil simplesmente despistar o pós-modernismo como um jargão vazio, como muita gente pensa. O pós-modernismo é uma coisa. É um tipo de estética que existiu, que foi influente e segundo a qual produziu-se textos. E foi influente em diversos campos. Foi influente no campo da poesia, no campo do cinema, no campo das artes cênicas e da performance, do drama e no campo da arquitetura, para citar alguns.

Num breve detour explicativo: o nascimento do pós-modernismo, pelo menos como palavra, se dá na arquitetura, com uma nova leva de arquitetos que busca ir além do cânone modernista—que prezava pelo aproveitamento máximo dos recursos, maximização da funcionalidade, padronização, aproveitamento do espaço e ruptura de distinções como entre estrutura e decoração. Estou usando aqui termos leigos, é possível que arquitetos usem termos mais específicos, mas o que está em jogo é isso. É um tipo de arquitetura que foge de um cânone abstrato para reivindicar elementos da vida quotidiana. Em vez de construir um “pato”, para usar o jargão de Robert Venturi e Denise Scott-Brown em Aprendendo com Las Vegas, a arquitetura poderia se dedicar a construir “galpões decorados”. Em vez de primar por critérios abstratos e universais do bom uso do espaço, a arquitetura poderia ser ornamental, poderia, ou deveria, se valer de elementos locais, vernaculares.

E o que o pós-modernismo inaugura é, de certa forma, a ironia. É uma forma nova de embutir ironia no texto. É um dizer algo com um sorrisinho no canto da boca. É um pouco gostar de perceber que, dizendo alguma coisa, você pode estar comunicando outra, para um público até diferente. A forma pela qual entendo que o pós-modernismo fez isso é instituindo um metadiscurso. Isso funciona da seguinte forma: em vez de simplesmente dizer coisas sinceramente, posso dizer coisas sinceramente dentro de um quadro que informa ao leitor experto que aquele texto não deve ser lido literalmente, não deve ser lido sinceramente, não deve ser tomado pelo seu valor nominal. É um quadro que informa ao leitor que há um subtexto atrás do texto. A figura de linguagem própria, ou pelo menos mais comum, é a da ironia, embora não seja a única.

Essa é a forma típica de como o pós-modernismo lida com a cisão entre texto e subtexto, ou melhor, essa própria distinção é o que ele inaugura: há um nível do discurso, onde coisas podem ser ditas, mas há também, agora, o nível do metadiscurso, onde as coisas que são ditas podem ser interpretadas de forma diferente, principalmente irônica.

Nova sinceridade

Já nos anos 1990, há uma espécie de contradiscurso do pós-modernismo, que expressa uma saturação com a necessidade constante de se estar lidando simultaneamente com dois níveis paralelos . Uma contraestética que entende que esses níveis são prejudiciais, que de alguma forma eles danificam a compreensão, danificam a arte, para ficar em termos abstratos. Me refiro aqui principalmente ao David Foster Wallace e à ideia da “nova sinceridade”. O tipo de literatura do David Foster Wallace se apoia na ideia de que há algo muito valioso em se recuperar, mesmo no nível da frase, um registro puro, sincero, não-irônico, de dizer coisas; a ideia de que existe uma beleza e, talvez além disso, uma liberdade maior quando você não precisa estar sempre atento ao tipo específico de metadiscurso que está operando a cada momento. Isso, de certa forma, libera o leitor para ter um tipo de experiência mais honesta, autêntica, com o texto.

Alguém, no Twitter, reclamou que nova sinceridade não tem nada a ver com millenialismo porque é algo “antiguérrimo”. Sim, precisamente. A nossa percepção de que um evento cultural dos anos 1990 é “antiguérrimo”, de que aconteceu “in illo tempore”, num momento primordial anterior à nossa existência, é indício de que ele deixou de ser computado como forma cultural específica para se naturalizar, se tornar forma cultural dada. Mais especificamente, dada à geração dos que se tornam adultos nos anos 2010. Para uma sensibilidade millenial, o gosto irônico já é completamente naturalizado, o que leva a figuras como a do hipster, por exemplo.

Quadros

Se formos falar em termos de qual tipo de sensibilidade vingou, ou, em outras palavras, conseguiu produzir mais textos e se tornar uma influência maior culturalmente, me parece que a comparação é quase ingrata. O pós-modernismo conseguiu introduzir algo que veio para ficar: a distinção entre o nível do texto e o nível do metatexto, o nível daquilo que é dito e nível dos quadros segundo os quais aquilo que é dito deve ser compreendido. Há bastante coisa para desdobrar aqui, então vou por partes.

Primeiro, quando falo em “quadros” estou usando uma linguagem do Goffman, que explica que, no campo da interação social, e que eu acho que pode ser expandido também para os campos da produção e circulação cultural, em todo tipo de interação há sempre “frames”, quadros normativos que informam como aquela interação específica deve ser tomada ou interpretada. Se eu estou num ambiente universitário dando uma palestra, há uma série de códigos, símbolos e imagens que estão sendo mobilizados para sustentar um quadro para o espectador ou para meu parceiro na interação. Eles envolvem, por exemplo, eu estar possivelmente vestindo uma camisa social, eu estar sentado à frente de um público num auditório, eu estar numa posição elevada, não haver mais ninguém falando ao mesmo tempo etc.

Essa ideia de quadro não é apenas operativa num contexto de interação interindividual, mas também num âmbito de produção e circulação de textos. Quando eu escrevo um texto, ele não circula e é recebido imediatamente; a forma de circulação dele não é dada imediatamente. Ela depende dos contextos em que esse texto vai circular, da forma como ele vai ser recebido, do estilo em que ele foi escrito, num processo obviamente bastante complexo de negociação entre autor, texto e leitor. Para falar mais concretamente: há pouco tempo se usava, no Twitter, o dispositivo do ~til irônico~. Se eu quisesse representar algo ironicamente, ou falar uma frase irônica, eu poderia pôr ~tils~ ao redor dela. É uma forma de indicar ao leitor que aquilo que estava sendo dito não deveria ser tomado literalmente. Poderíamos falar também do uso de “air quotes”, ou mesmo de aspas simples no texto, que também têm função de indicar algum distanciamento em relação ao termo grafado.

Um outro exemplo claro de quadro normativo que informa que o texto deve ser recebido ironicamente é o uso de perguntas retóricas, ou de pontuação incongruente. Por exemplo, se sou tido como alguém que usa pontuação correta segundo a norma culta, quando uso reticências com quatro ou cinco pontos, por exemplo, que é um claro desvio da norma, meu uso cria um quadro indicativo de que o que vem antes não deve ser lido tão literalmente. Deve ser lido com um grão de sal, com um pé atrás, ou com um sorrisinho irônico. São exemplos de quadros, ou metadiscursos.

Discursos e metadiscursos, textos e metatextos: sinceridade sincera e sinceridade irônica

O que eu acho que o pós-modernismo conseguiu fazer—retomando—é trazer à tona, tornar ciente para um público amplo, que a todo momento há esses dois níveis operando no discurso. Há um nível do discurso “em si” e um nível metadiscursivo. Isso não significa dizer que todas as coisas são ditas sempre ironicamente. Obviamente não é o caso. Há vários contextos em que coisas são ditas de forma sincera. Mas, eu gostaria de sugerir, mesmo quando as coisas são ditas de forma sincera, está em operação esse nível duplo de discursividade. Na circulação de textos para serem tomados sinceramente, o que acontece é que existe primeiro um substrato de discurso sincero e, acima dele, um metadiscurso, um quadro que informa que aquele discurso deve ser tomado sinceramente. Estou chamando isso de sinceridade sincera.

Pensemos no exemplo do âncora no noticiário—do William Bonner dando uma notícia no Jornal Nacional. O William Bonner está cercado de signos que apontam que aquele discurso deve ser lido pelo seu valor nominal, deve ser lido pelas palavras que estão sendo ditas, de forma literal. Ele está num contexto claramente profissional, está vestindo roupas profissionais, está cercado de outros símbolos, de notícias rolando no pé da tela, ele não ri, ele não usa muitas figuras retóricas etc. São vários elementos que formam esse quadro. Essa é, então, uma forma de leitura sincera—operando nesses dois níveis, de um discurso sincero e um quadro sincero.

Podemos pensar também num exemplo por via negativa. Quando reclamam, por exemplo, da “crise estética” do governo Bolsonaro, entendo que é isso, de certa forma, que está em jogo. É um desconforto com o descompasso que existe entre um Governo Federal, ou seja, uma instituição cercada de pompa e protocolo, de procedimentos rigidamente coreografados, previamente desenhados etc., que não se adequa a uma estética do feio ou do amador, que é de certa forma preferida ou advogada pelo governo hoje. Quando se reclama de crise estética, o que se quer dizer é que o quadro que está orientando o texto do poder público não está adequado à natureza do poder público, ou não é um quadro típico.

Já no uso simplesmente irônico, ou numa “sinceridade irônica”, como já mencionei, haveria um texto que está sendo dito sinceramente, mas acoplado a um quadro que aponta para uma recepção que deve ser irônica, cômica de alguma outra forma etc. É o caso das aspas irônicas. Ou, para continuar num exemplo televisivo, podemos pensar num programa de humor, em que se simula um programa de notícias, como num Casseta e Planeta. Há elementos que indicam que o que está sendo dito pelos “âncoras” naquele momento não deve ser lido sinceramente. Deve ser lido com um sorrisinho.

Ironia irônica

Essas duas formas de apresentação de discursos, obviamente, não são as únicas. E talvez nem mesmo sejam as duas maiores formas de apresentação de discurso. Mas me parece que são as duas formas que representam um pouco o legado do pós-modernismo no campo de produção e circulação cultural. Agora, num segundo momento, me parece que essas duas grandes formas não explicam modalidades mais recentes que têm surgido, em especial o que chamei de ironia irônica. A aparente redundância nesses termos se explica pelo fato de que haveria, segundo a hipótese que estou levantando aqui, dois registros sobrepostos: primeiro, um registro do discurso; depois, um registro do metadiscurso, um quadro normativo maior que explica como esse discurso deve ser lido.

Tenho vários casos em mente quando penso que as duas formas, digamos, pós-modernistas, não dão conta de explicar. O principal deles, no contexto brasileiro recente, é a crítica que se fez contra a Folha de S.Paulo por ter exibido uma foto do Mario Frias seminu, com a manchete “O homem do presidente” para apresentar sua nomeação como Secretário de Cultura, que foi acusada pro alguns de moralismo e homofobia; e que, por outro lado, foi também lida comicamente. Inclusive escrevi um breve texto sobre isso, em que avento a questão, mas com o qual não me sinto plenamente satisfeito. O que argumentei no texto é que a sensibilidade daqueles que leram o evento de forma cômica foge de um padrão que chamei de “hétero”, que seria um tipo de sensibilidade que opera segundo essas duas categorias, da sinceridade sincera e da sinceridade irônica. Mas a essa nova forma, que eu não consegui dar nome no texto sobre o Mario Frias, tento dar um nome aqui.

A ironia irônica é um tipo específico de texto que me parece circular com frequência cada vez maior, através do qual um texto de partida irônico é situado dentro de um quadro também irônico. E aí, me parece, as coisas ficam um pouco mais confusas. Veja que não se trata simplesmente de um texto irônico dito com um quadro sincero—o que poderia incitar mal entendidos, como frequentemente acontece quando alguém diz algo que é lido como sério mas depois explica que a intenção era irônica—nem de um texto de aparência sincera mas situado dentro de um quadro irônico—o que pode ser feito de diversas formas, mais ou menos explícitas, o uso de grifos como aspas sendo talvez a mais explícita delas. Não se trata de nenhum desses dois casos, mas de um tipo de texto que é irônico em essência e circula dentro de um quadro irônico.

Aqui eu acho um pouco mais difícil pensar em qualquer exemplo que seja realmente significativo, ou que seja, enfim, realmente exemplificativo disso que estou chamando de ironia irônica. Mas há uma série de tipos de meme—e estou bem ciente de que o próprio uso da palavra meme já é um pouco decaído segundo uma estética da ironia irônica—um uso de meme que não é um simples uso da ironia, nem um mero retorno à sinceridade, mas algo dito ironicamente e situado dentro de um quadro irônico. Isso franqueia ao leitor uma gama enorme de possibilidades de interpretação.

Novo camp

Eu entendo que o linguajar esteja um pouco vago, mas vou tentar apurar um pouco, limitando o que eu quero dizer com um exemplo, o do camp. É um exemplo anacrônico, de um tipo de sensibilidade que foi, talvez, um hegemon dentro de um contexto dos movimentos de Stonewall nos Estados Unidos, ou mais genericamente dentro de comunidades LGBT nos anos 1970 e 1980. E pode ser entendido, também, como uma sensibilidade própria de comunidades como a de travestis e drag queens, com o universo que no Brasil circunda o pajubá. É um tipo de sensibilidade que, nas palavras da Susan Sontag, que escreveu a grande biografia do camp, entende ou aprecia os objetos entre aspas. Como ela diz, não se trata de uma lâmpada, mas de uma “lâmpada”; não se trata de uma mulher, mas de uma “mulher”. É uma sensibilidade que se vale de objetos que circulam tipicamente numa esfera sincera e os importa para um regime de uso irônico.

O camp, de certa forma, trata de operar, segundo as categorias que lancei aqui, com textos sinceros dentro de quadros irônicos. Mas o camp é muito esperto e hábil na maneira como lida com esses quadros. Não é simplesmente ironia explícita, mas também não é pura sinceridade. Eu escrevi um pouco sobre o camp num texto sobre a representação de vilões demoníacos como homens afeminados em desenhos do início dos anos 2000—a quem interessar, há um pouco mais disso lá. O que a ironia irônica faz, me parece, é radicalizar o camp num sentido que para mim é muito específico. Enquanto o camp se valia de objetos que circulavam normalmente numa esfera sincera—lâmpada e mulher, voltando aos exemplos—a ironia irônica, que chamo a partir de agora de novo camp, tem como fonte, não objetos de um registro sincero, mas os próprios objetos de um registro já irônico.

Isso, já podemos imaginar, cria uma complexidade muito maior. Enquanto o camp do século XX lia de forma irônica, mesmo que através de uma ironia muito fina, objetos culturais da vida quotidiana, o novo camp lê de forma irônica objetos que nascem ironicamente. Mulher e lâmpada não são originalmente irônicos; alguns memes, porém, são. Um perfil do Twitter que compartilhe ironicamente um meme irônico do ano passado, de 2019—portanto já meio velho—, cria possibilidades de leitura aí no meio. Eu acho que isso é um novo camp porque aquilo que me parece ser o mais típico, ou a maior novidade do camp, é conseguir se refestelar dentro dessa dubiedade que a recepção irônica proporciona. O que o novo camp faz é radicalizar isso. Ele consegue situar objetos que nascem ironicamente dentro de quadros irônicos, e aí ter prazer, rolar nessa imensa dubiedade, nessa complexidade de formas de interpretação.

Não quis, aqui, fazer parecer que formas contemporâneas de leitura caem sempre em uma caixinha específica. Acho que, pelo contrário, é mais fácil identificarmos como várias formas específicas se cruzam e se implicam. Um bom exemplo de ironia irônica está em programas como Nathan for You, em que o atrativo não está nem em que se trata de um reality show, apenas, nem num programa de comédia, apenas, mas sim no fato de que essa questão nem faz sentido, porque a distinção na qual ela se baseia já decaiu.

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