Maha Mamo viveu 30 anos como apátrida

Rede Globo
Órfãos da Terra
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4 min readJul 12, 2019

Os relatos de pessoas que tiveram que abandonar seus países e as histórias de quem se dedica a ajudar refugiados a reconstruírem suas vidas estão na 10ª edição do REP — Repercutindo Histórias

Por 30 anos da minha vida, eu vivi como apátrida, mas 26 desses anos, eu vivi sem documento. Um ser humano quando nasce, consegue nacionalidade de dois jeitos, a primeira, pela terra onde você nasce; a segunda, pelo sangue. No Líbano, não sou libanesa, porque meu pai era sírio. Minha mãe era muçulmana e meu pai era cristão, na Síria o casamento inter-religioso é ilegal. Aí, quando eles se apaixonaram, fugiram da Síria para o Líbano, casaram no Líbano, esse casamento não foi registrado. Minha irmã, eu e meu irmão, nascidos no Líbano, não somos nem libaneses nem sírios, somos apátridas.

Minha “primeira problema” foi — que eu nem lembro — minha mãe quis colocar a gente dentro da escola. Ela teve que procurar muitas escolas dentro do Líbano e nenhuma delas aceitou. Até, enfim, uma falou, “Tudo bem, eles são crianças, podem estudar”. Quando acabei meus estudos, meu sonho era de virar médica. E a primeira universidade que eu fui, ele simplesmente pegou todos os meus documentos e jogou na minha cara, “Quem é você? Se você é libanesa, você consegue estudar. Se você é síria, você consegue estudar. Mas quem é você?”.

Coloquei uma lista de todas as universidades que existiam no Líbano. E fui uma atrás de outra, atrás de outra, atrás de outra, até que eu consegui em uma, que não tinha Medicina, mas tinha Business and Computer. Lá que eu fiz meu Sistema de Informação, até fui além, eu fiz meu mestrado. Mas em uma universidade privada, para estudar, você tem que trabalhar e trabalhar sem documento era outro sonho, era outro desafio. Sempre trabalhei muito mais, ganhando muito menos.

Mas não era só trabalho. No meu caso, eu tenho uma alergia, que chama urticária. Quando essa alergia me ataca, eu tenho que correr para o hospital. Quando eu chegava no hospital, eu não era atendida, porque não tinha documento pra apresentar. Aí sempre, eu apresentava o documento da minha amiga para conseguir ser atendida dentro do hospital.

Por dez anos, fui buscar e procurar uma solução. Por dez anos, fui negada por países do mundo inteiro. Mandei minha história para todas as embaixadas “de mundo inteiro”, o único país que me acolheu foi o Brasil. Mas só porque era apátridas, porque em 2014, o Brasil abriu as portas para os refugiados sírios. E foi nessa onda que eu consegui chegar ao Brasil.

Abri as redes sociais e comecei a procurar, achei uma família em Belo Horizonte, que me acolheu na casa deles. Minha irmã e meu irmão chegaram aqui, sem conhecer nada nem falar português. Lá, eu falava quatro línguas, na minha chegada, inglês, francês, armênio e árabe, eu tinha mestrado. Único trabalho que eu consegui trabalhar na minha chegada, era panfletagem, comecei a distribuir jornais. Mas era muito feliz, era muito feliz porque era meu primeiro trabalho legal, como ser humano que existe, não como uma sombra. Desde então, eu comecei a falar da minha história, comecei a compartilhar a felicidade que o Brasil me deu de me sentir um ser humano.

Em maio de 2016, fomos aprovados como refugiados. Quem sonha “de ser refugiado?”. Eu, minha irmã e meu irmão. Porque, para a gente, sendo refugiados, significa que você tem uma esperança de viver no mesmo território por 5 anos, sem ter medo nenhum de uma blitz te parar e você “vai presa”, porque você não tem nada para apresentar.

Mas a vida é tão cruel que, depois de um mês, eu perdi meu irmão. Ele foi assassinado, numa tentativa de assalto. Não levaram nada dele, levaram só a vida dele. Ele faleceu como apátrida, mas sorte dele que um mês antes, ele foi considerado como refugiado, que ele conseguiu a certidão de óbito.

Descobri que no mundo inteiro — eu achava que era só eu, minha irmã e meu irmão -, são “10 milhões pessoas apátridas”, que ninguém fala, que ninguém nem toca no assunto. Falei, “Isso vai ser a missão da minha vida”. Desde então, comecei a falar mais alto, comecei a viajar mais, comecei a ser colocada “a muitos lugares” para tentar “um pequena contribuição” nas mudanças das leis. Porque as leis foram escritas por ser humano e ser humano falha. O nosso papel é tentar ajustar isso.

Em maio de 2017, no Brasil, a Nova Lei de Imigração tem capítulo, tudo que fala de apátrida, que identifica uma pessoa apátrida e que facilita a naturalização das pessoas apátridas. Em julho de 2018, eu e minha irmã viramos as primeiras pessoas no Brasil a ser identificadas como apátridas. Em outubro de 2018, consegui a minha nacionalidade brasileira. Hoje, eu sou brasileira. Mas o que que eu quero mesmo não é chamar esses “10 milhões apátridas” para o Brasil, minha meta mesmo é levar a lei, que a gente tem hoje no Brasil, que o Brasil virou o maior exemplo de mundo, e “aplicar ele” no mundo inteiro, nos outros países.

Obrigada!

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