REP — Órfãos da Terra: Kaysar Dadour passou por duas guerras antes de chegar no Brasil

Rede Globo
Órfãos da Terra
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6 min readJul 9, 2019

Os relatos de pessoas que tiveram que abandonar seus países e as histórias de quem se dedica a ajudar refugiados a reconstruírem suas vidas estão na 10ª edição do REP — Repercutindo Histórias

Meu nome é Kaysar Dadour, eu sou sírio, nasci em Alepo. Tinha uma vida muito bonita na Síria, era uma criança muito feliz. Namorava escondido, bagunçava demais e sempre feliz. Então, namorei uma menina bastante tempo, escondido. Nós ficamos mais de seis anos. E aí, depois que estava começando a guerra, em 2011, aconteceu uma coisa que não gosto muito de falar, “preconceito, uma coisa, enfim…”: — Eu tenho que sair da Síria. Conversei com meu pai e minha mãe e, aí, surgiu a Ucrânia. Fui para a Ucrânia, sem falar idioma, sem falar nada, com minha mochila. Fui de avião, eu não consegui visto, porque foi complicado até conseguir visto.

Eu sou cristão, um árabe cristão, com muito orgulho, que “passa preconceito” por ser cristão… árabe. Porque estrangeiro é normal ser cristão, agora, árabe ser cristão é um pouquinho complicado. Minha família ficou na Síria. Meu pai, minha mãe, meu irmão, meu avô, meu tio, tudo. Eu nunca pensei que iria sair da Síria, porque Alepo era minha paixão. E é até agora, paixão.

Quando cheguei na Ucrânia, comecei uma vida “complicada um pouco”. Para conseguir um visto lá, eu tinha que entrar para uma universidade. Aí, consegui dar um jeito de colocar meu nome na universidade para conseguir o visto. Consegui o visto e não tinha lugar para ficar. Consegui trabalhar de tudo, eu fui garçom, fui lixeiro, o que você quiser fiz, carregador… eu carregava as coisas.

De repente, sumiu minha namorada. Aí, fiquei atrás dela ligando. Eu não consegui ligar para o pai dela, nem para a mãe dela, porque era um amor proibido. Coisa mais linda do mundo!

Estava com meu amigo do meu lado, mexendo no computador e, enfim, apareceu uma foto. Falei: — Ué, o que está fazendo a foto dessa menina com você?

- Não sei, estava aqui vendo as novidades sobre a Síria e apareceu uma menina morta aqui.

Falei: — Passa para mim esse negócio aí.

Aí, vi que, infelizmente, era minha namorada, que levou não sei quantos tiros, foi estuprada. Foi muito difícil devolver o corpo dela.

Depois, comecei a perder muitos amigos, perdi mais de 20 pessoas mais ou menos, mas nunca perdi a fé, sabe? Sofremos preconceito pesado na Ucrânia. Religioso, tá? Uma coisa assim. Lá foi bem pesado para mim. A gente ficava com várias pessoas, que trocavam mapas para fugir. Parecia um filme de terror. Uma loucura! “ Vamos ter que sair daqui, vale essa fronteira tá. Essa fronteira tá ruim, essa fronteira não dá”. Estava todo mundo indo para a Suécia e para a Alemanha. A maioria dos sírios ou quem estava querendo sair de lá.

De repente, estava dormindo e acordei, surgiu o Brasil do nada. Do nada, na minha cabeça. Aí, liguei para a minha mãe. Falei:- Mãe, Brasil.

- O que que tem o Brasil?

- Tem um primo no Brasil?

-Olha, tem um primo do teu avô e da sua avó, a mãe da mãe

- Ah, então tá! Eu vou pro Brasil

- Mas filho, o que acontece com você?

- Nada, nada, mãe! Tá tudo ótimo, tudo bem!

Eu sempre “mentia” para a minha família, que “tô ótimo”, “tô bem”, “que minha vida é maravilhosa”, sabe. “Tudo ótimo!”.

A aí, ela disse: — Tá bom. Quer Brasil, Brasil. Mas, por que vai sair da Ucrânia?

- Não, eu já cansei. Tenho que sair de lá.

E estava começando a guerra na Ucrânia. Eu fugi da Síria por causa da guerra. Cheguei na Ucrânia, passei outra guerra. Eu ia ter que fugir de lá, da Ucrânia, de novo.

Dei um jeito, enfim, consegui um visto, foi muito legal! Viajei, cheguei no Brasil, aqui. Cheguei aqui, tinha meu primo, que não conhecia ele, porque conheci ele, quando era pequenininho, tinha 6, 7 anos. Não lembrava dele, nem ele lembrava de mim. Enfim, muito bem, deu tudo certo, consegui trabalhar com ele. Fui na Polícia Federal, também, pedi refúgio, me ajudaram muito, me deram documentos, protocolos, aí “volta depois de seis meses”. Consegui reunir CPF, Carteira de Trabalho, o que você quiser. Consegui tudo. Foi muito tranquilo. Aí, comecei a trabalhar aqui também. Garçom, animador de festa de criança, outras coisas também. E fazia uns biquinhos fora.

Eu sempre “queria” trazer minha família. “Quero ficar minha família, pois já está se passando sete anos, vai fazer oito anos, sem ver minha família”.

Aí, estava uma vez sentado em um lugar, de repente, vi um negócio na televisão. Estava todo mundo sentado “desse jeito”, assistindo. Falei : — O que que é isso?

- BBB.

- O que que é esse BBB?

- BBB, você tem que fica três meses e ganha um milhão e meio

- O quê, três meses e você ganha um milhão e meio? Tão bom assim?

- Ah, mas você tem que aguentar…

- Mas o que eu tenho que aguentar? Vivendo lá, tem comida, tem água, tem tudo?

- Tem.

-Então, tá beleza! Tá resolvido. Pra mim, tá ótimo! Maravilhoso! Tô lá!

Então, vi a inscrição. Eu estava fazendo “uma festa criança”, era Homem Aranha e aí, estava de roupa de Homem Aranha, fiz inscrição no BBB.

Falei: — Oi, meu nome é Kaysar Dadour! Sou da Síria, nascido na Alepo. Eu quero entrar pro BBB porque eu quero trazer minha família pro Brasil e porque eu mereço. E vou ganhar um milhão e meio. Simplesmente assim.

Então, me chamaram pro BBB. E aí, entrei, consegui, saí, perdido, porque eu nunca assisti ao BBB. Eu não sabia que tinha que se preparar, porque, depois do BBB, você vê muitas câmeras de entrevistas, “dadadi, dadadá, dadadi..”. Agora, “quando chegou as provas de resistência, ninguém vai me bater não, heim!”. Ganhei dois carros lá e saí em segundo lugar, graças a Deus!

Não ganhei um milhão e meio, mas consegui trazer minha família ao Brasil. Isso que era o meu maior sonho, meu maior prêmio. Uma coisa boa é que minha família tá muito feliz aqui e uma coisa que me deixou “assim”, sabe: Quando meu pai chegou, que tava tomando banho, “Nossa, filho, tem água quente aqui demais! Tão bom, tomando banho”. “Eu quase chorei! “E tô conseguindo sair aqui, andar na rua, passear”. Ele já me agradeceu, meu pai, de “tão felicidade”, “tão alegria” que ele está sentido. Minha mãe também, muito feliz, minha irmã também, muito feliz.

Depois do BBB, comecei a estudar, fazer umas coisas e também… fui chamado para fazer uma coisa muito legal, gente! Fui chamado para fazer um teste da novela, se chama “Órfãos da Terra”. E aí, passei no teste, passei.

É uma coisa, cara, refugiado é um ser humano. Então, infelizmente, saiu do país dele por causa da guerra. Não é objetivo dele estragar o país dos outros, nada disso não. O objetivo dele é encontrar paz e amor e felicidade! Eu queria muito agradecer a essa terra maravilhosa porque me deixou encontrar minha família, depois de 7, 8 anos. E consegui documento e tudo.

E agora, eu tô atuando e trabalhando feliz, muito! E vou falar pra vocês que “nunca desista, não”, que sempre lembre, que quando você acorda todo dia, fala “Que hoje vai ser o melhor dia no mundo!” , tem que ser “no mundo” e não é “do mundo”, é “no mundo”! Bota fé nessa frase e vai pra frente. E nunca desista de nada, porque a vida é bonita e curta. Vamos curtir ela demais!

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