Um caldeirão cultural chamado Brasil

Rede Globo
Órfãos da Terra
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5 min readJul 8, 2019

Nas principais capitais do Brasil você consegue almoçar em um restaurante japonês, trabalhar em uma empresa de origem alemã, comprar roupas em uma grife americana, se refrescar com um sorvete italiano e dançar alguma música com origens africanas. Enquanto você trafega pela cidade, sem perceber está utilizando um pouco de uma das língua dos povos originários, geralmente o Nheengatu, através dos nome às ruas, monumentos históricos e bairros (principalmente no Sudeste).

Essa realidade multicultural já era celebrada há quase um século, quando internacionalmente se vendia a idéia de “Paraíso Racial Brasileiro”. Existe uma grande mentira e uma grande verdade sobre isso: A mentira, não contada, é que o paraíso apenas favorecia as elites. Vendiam o discurso apaziguador para se manter no topo das instituições sociais, hierarquizando as culturas, não européias, chamadas de selvagens por muitos influentes filósofos e historiadores dos séculos passados; A grande verdade é que, mesmo com o projeto sórdido da sociedade discriminatória, nascida após 1900, as várias culturas se mantiveram graças a resistência de seus povos e hoje podem ser acessadas por quem tiver interesse em conhecê-las.

Com o passar do tempo outros grupos étnicos foram se inserindo em nossa realidade multicultural, promovendo essa experiência cosmopolitana, descrita no primeiro parágrafo. O caminho até aqui não foi nada fácil e é repleto de histórias interessantes, capazes de moldar de maneira intensa nossa percepção social

Dos Nativos aos Árabes

A cultura portuguesa veio com as caravelas (entre 1498, com Duarte Pacheco Pereira, e 1500, com Pedro Álvares Cabral) e entrou em choque com os nativos brasileiros. Talvez os “índios” foram o grupo mais prejudicado culturalmente em nossa história. Apesar de conhecermos suas contribuições linguísticas e carregarmos traços comportamentais, grande parte do conhecimento foi silenciado. O epistemicídio apagou muitas etnias, enquanto outras se integraram à rotina dos portugueses no país. Sobraram alguns hábitos culinários e a herança da língua, que acabou se diferenciando do Português de Portugal graças aos dialetos criados da interação com os nativos — como o dialeto caipira.

O povo africano chegou às nossas terras através da nefasta escravidão transatlântica. Gente preta era tratada como objeto e não como cidadãos do Brasil. Até os negros oriundos da miscigenação com os colonos, nunca eram, em sua maioria, colocados em pé de igualdade, a menos que se afastassem ao máximo das raízes africanas — seja na dimensão cultural ou mesmo na estética. Eles fizeram o país prosperar economicamente. Africanos foram utilizados para enriquecer a sociedade da qual não participavam e mesmo assim nos deixaram uma linda herança ancestral: as tradições, a musicalidade, a religiosidade e suas histórias. Tambores e a dança são coisas sagradas nas várias tradições em África, aqui se transformaram no poderoso samba, hoje exibido como um dos maiores símbolos culturais brasileiros no mundo.

Através do povo negro o Brasil foi impactado de forma contundente pelo Islã. Por volta dos anos 1800 muitos muçulmanos acabaram escravizados e trazidos para o país, em especial os haussás, etnia derrotada durante uma jihad, a “guerra santa”. Sua cultura marcou bastante a em nossa língua. Palavras como arroz, roupas como o abadá e rituais sagrados revestiram vários aspectos da nossa sociedade. De certo modo, alguns desses costumes abriram construíram um espaço para acolher o movimento da imigração Árabe que chegou em nossas terras mais tarde.

Há indícios de sírios e libaneses aqui no Brasil desde os séculos XVI-XVII, porém não era uma presença massiva o suficiente para considerar uma imigração. Essa grande movimentação só veio acontecer em 1880, após uma visita diplomática de Dom Pedro II a vários países do Oriente Médio. Os conflitos daquela região deram motivos para muitos árabes de países como Iraque, Marrocos, Palestina e Líbano, procurarem abrigo na América do Sul. Em seus países enfrentaram perseguições religiosas ou de grupos radicais que agiam de forma violenta. Muitas famílias foram destruídas nesse doloroso processo. Abandonaram tudo para desbravar uma realidade distinta com pessoas e culturas inimagináveis aqui no Brasil.

Imigrantes como os Italianos e alemães chegaram ao país em um período parecido. Porém, eles foram amplamente incentivados pelo próprio governo, investindo em sua chegada e abrindo espaço para grupos como a “Sociedade Promotora da Imigração”, atuando até 1895 para trazer Italianos para cá. À partir de 1890, com um decreto de Decreto-Lei nº 528 o Brasil traçou um grande plano de promoção de imigração com objetivos de tornar o povo brasileiro mais parecido com o europeu, na sua configuração étnica e cultural — em detrimento às características negras que eram mais presentes na sociedade.

Esse pensamento se manteve nas décadas seguintes, presentes em leis até 1945 como descreve o decreto Decreto-Lei nº 7.967. (https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-7967-18-setembro-1945-416614-publicacaooriginal-1-pe.html)

“Art. 2º Atender-se-á, na admissão dos imigrantes, à necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características mais convenientes da sua ascendência européia, assim como a defesa do trabalhador nacional.”

O Impacto da cultura sírio-libanesa na economia brasileira

É nesse complexo cenário de imigração que se situam os sírios e libaneses. Apesar das várias origens, inicialmente a maior parte deles era chamada apenas de “Turcos” por muitos brasileiros. Quando chegaram não foram trabalhar nas lavouras e campos como aconteceu com outras correntes imigratórias, ao invés disso eles se tornaram “Mascates”, uma classe de comerciante hostilizada no passado (mascates protagonizaram uma revolta histórica em 1710, mas deram a volta por cima emprestando dinheiro para vários proprietários de terras).

“vendiam tecidos, sapatos, roupas e centenas de outros produtos em lombo de burro, viajando de lugarejo em lugarejo, agindo como integradores do Brasil do passado. Eram os arautos das boas e más notícias, disseminadores das novidades, da cultura e da própria história” — Roberto Duailibi (link — http://www.academiapaulistadeletras.org.br/artigos.asp?materia=1214)

Entre 1900 e 1920 houve uma grande depressão e muitos dos imigrantes sírio-libaneses faliram em seus empreendimentos. Alguns haviam feito fortunas no ciclo da borracha da Amazônia, mas acabaram perdendo tudo nessa grande crise. Outros se mantiveram com muito êxito. Fundaram hospitais, clubes, escolas, dominaram o comércio em Minas Gerais e prosperaram após a década de 1940, quando 107.074 brasileiros eram descendentes de sírios, libaneses, palestinos, iraquianos ou árabes

Segundo Yuval Harari, em “Sapiens”, o comércio tem um grande poder de transformação social. Foi através dele que o povo sírio-libanês conseguiu se integrar e inspirar comportamentos inseridos na nossa sociedade. Como nossa cultura os abraçava, eles prosperaram. Hoje muitos deles são grandes varejistas e donos de restaurantes conhecidos. Inclusive, a história desses comerciantes passa pela criação da chamada pequena Bagdá, a atual 25 de Março.

Agora é um costume muito comum de quem é de São Paulo, comer uma boa esfiha ou um bom Quibe, comidas do nosso dia-a-dia e que são parte da cultura trazida do Oriente Médio pela imigração. É corriqueiro, a gente nem pensa sua origem. As identidades líbano-brasileira, árabe-brasileira e sírio-brasileira, definitivamente, se tornaram uma parte dessa constelação étnica, a realidade multicultural do nosso país.

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