Viviane Reis criou organização para ajudar crianças refugiadas

Rede Globo
Órfãos da Terra
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5 min readJul 11, 2019

Os relatos de pessoas que tiveram que abandonar seus países e as histórias de quem se dedica a ajudar refugiados a reconstruírem suas vidas estão na 10ª edição do REP — Repercutindo Histórias

Eu sou Viviane Reis, fundadora da Organização I Know My Rights.

Eu não conhecia nada sobre refúgio. Em 2006, eu estava vivendo um momento crítico da minha vida, porque eu perdi o meu pai, e fez com que eu entrasse numa crise de questionar essa humanidade, esse lugar que a gente vive, as relações que a gente tem, e quis entender o meu lugar nesse mundo.

Comecei uma busca e assisti a uma entrevista da Angelina Jolie que ela era enviada especial da Agência da ONU para refugiados e ela falava de uma visita que ela tinha feito, num campo de refugiados, na Serra Leoa. E, naquela guerra, um dos símbolos daquele massacre mais macabros era que os rebeldes, eles decepavam as pessoas. Cortavam as mãos, cortavam os pés, até de bebês. E ela falava sobre essa experiência que ela teve.

Eu fiquei muito chocada, porque eu não imaginava que, no mundo, isso podia acontecer com crianças e quis estudar. Eu quis saber se os refugiados chegavam ao nosso país. Se eles chegavam, quais refugiados conseguiam chegar? De onde eles viam? Como as crianças chegavam? O que acontecia com elas?

Olhando para o Brasil, eu descobri que a gente tem uma lei que ela é considerada como referência nas Nações Unidas, que é uma lei moderna, uma lei abrangente. Mas eu quis entender como as organizações estavam trabalhando e como estavam as crianças. Eu tinha várias perguntas: “Se as crianças, elas chegam, elas vão pra escola?”, “Que estado emocional que elas chegam? Elas têm algum acompanhamento? E quando elas crescem, elas vão para a faculdade? Elas querem voltar para o país delas?

Procurei os meus familiares, ninguém quis ajudar, os meus amigos não quiseram ajudar. Todo mundo disse “não” e isso me fortaleceu, porque eu achava que essas crianças estavam sendo negligenciadas e abandonadas, mas eu não tinha noção do quanto estavam, porque as pessoas que eu confiava, que eu sabia que eram generosas, que eram solidárias, que eram humanas, confortavelmente estavam dizendo não.

E aí, eu resolvi abrir uma página no Facebook. Eu abri essa página do Facebook e coloquei lá “Eu conheço os meus direitos”, “I Know My Rights”, porque eu entendi que tudo que a gente precisa fazer por elas é direito delas, não é favor. A gente precisa se conscientizar da nossa cidadania. Eu acho que, por uns 8 ou 9 meses, eu postei e eu curti. Tinha o meu like, por muito tempo eu fiquei falando sem que ninguém se interessasse em saber.

Quando a Guerra da Síria, em 2012, completou um ano e a mídia entendeu que mais da metade da população era formada por crianças, mudou o enfoque da notícia. Eles começaram a falar do impacto da guerra na vida da criança. Aí, despertou o olhar das pessoas.

O trabalho que a gente faz hoje é de acolher a criança e ajudar na integração. Nós ajudamos as crianças que chegam em busca de refúgio, o foco é a criança, mas de uma forma indireta, a gente ajuda toda família. E a gente também ajuda a trazer as crianças que ficaram para trás no momento da fuga, porque infelizmente isso acontece. Desde o início do nosso trabalho, pais e mães nos procuram pedindo ajuda, porque já são reconhecidos como refugiados, para que essas crianças possam vir para o Brasil.

Eu amo a língua portuguesa, mas a palavra “refugiado”, ela traz uma traição na semântica para a gente. Porque, quando a gente ouve “refugiado”, pensa em foragido, foragido é fugitivo, fugitivo é criminoso. Para muitas pessoas, elas já consideram que entenderam tudo sobre refugiado, só com esse raciocínio, e eles não são criminosos. São pais, são mães, são crianças, que perderam seu lugar no mundo. E eles só estão aqui pedido uma chance de continuarem vivos e a gente nega essa chance. A vida de uma criança tem que ser mais importante do que a nacionalidade dela.

Uma vez, eu estava fazendo uma reunião na casa de uma amiga, que faz parte da IKMR (I Know My Rights), e as duas netinhas dela estavam brincando, no espaço que a gente estava, mas a gente não achou que ela estivesse prestando atenção. E a gente estava contando como os países tratam as pessoas que chegam aqui em busca de refúgio, e a Carol, de 4 anos, que estava vendo a nossa conversa, fez assim, “Gente, esse não é o planeta Terra?”. A gente ficou em silêncio. Primeiro, eu não sabia que ela estava prestando atenção na conversa. E, agora, “Como vou explicar para a Carol que pode ser que aconteça alguma coisa e ela perca o lugar no mundo dela?”.

Aí, todos os adultos ficaram em silêncio e a Carol fez assim, “E se a gente fosse com os refugiados morar na Lua?”. O que me emocionou, na fala da Carol, foi que ela não disse assim, “Por que os refugiados não vão morar a Lua? ”, que é a postura de vários países e de vários povos, “Não nos importa o que acontece com essas pessoas, elas que se virem, elas que achem um lugar para elas, desde que não seja aqui”. A Carol também não disse “Por que que a gente não ajudar os refugiados a chegar na lua?”, é a postura de vários países , que fazem vários acordos políticos e de dinheiro, para que os refugiados sejam levados para lugares aonde estejam longe dessa população, que não quer contato com eles.

A Carol disse “Vamos morar com os refugiados na Lua!”. Então, eu brinco que, se algum dia a gente tiver que ir pra Lua, com a Carol e com os refugiados, lá na Lua, eles vão perguntar, “Por que que vocês fugiram da terra?” E a gente vai dizer para eles que a gente fugiu da terra para defender nosso direito de sermos humanos. Esse é o primeiro direito que a gente tem que defender.

Muitas pessoas perguntam: “Você tem refugiados na sua ascendência? Você é descendente de alguém do Oriente Médio? Descendente da África? Por que que você se conectou com esses…? Por que que essa causa te tocou? Porque eu sou um ser humano, eu não sou um cercado de chão, eu não sou um território, eu não sou uma nacionalidade. Então, tudo que acontece comigo, sendo um ser humano, diz respeito a todo mundo, e tudo que acontece com o outro diz respeito a mim. E foi quando eu perdi esse preconceito, que eu passei a me enxergar. A crise que eu tinha de não entender, de não querer ficar aqui, de querer ir embora, de tentar descobrir o que eu vim fazer aqui, me trouxe para esse lugar para conhecer essas pessoas, que são as pessoas mais fortes que eu conheço.

A ONU diz, o ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados) diz que os refugiados são as pessoas mais vulneráveis do mundo. E eu descobri que, para você ser a pessoa mais vulnerável do mundo, você tem que ser um gigante. Então, a gente precisa olhar pro outro, sem preconceito, pra se enxergar no outro, porque quando a gente se enxergar no outro, a gente vai entender o lugar que a gente tem no mundo.

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