Whissam Arbash reconstruiu a vida através do amor e da poesia

Rede Globo
Órfãos da Terra
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4 min readJul 17, 2019

Os relatos de pessoas que tiveram que abandonar seus países e as histórias de quem se dedica a ajudar refugiados a reconstruírem suas vidas estão na 10ª edição do REP — Repercutindo Histórias

Boa tarde! A primeira coisa a se refugiar, quando uma guerra acontece, o amor e a poesia.

Nasci na Síria, numa cidade do interior de Damasco, lá onde eu morava, na Síria, uma cidade tradicional. Lá tem que estudar, estudar, conseguir uma nota mais alta possível, entrar para a faculdade. Isso que eu fiz. Mas tinha uma coisa dentro de mim, que é o amor por teatro, por poesia, por cinema, que eu não conseguia botar para fora, porque na minha cidade tradicional, não tinha nem teatro, nem cinema, nem nada.

Tava estudando numa cidade chamada Homs, faculdade de Farmácia, quando a guerra começou, aí tive que me refugiar para Damasco, para a capital, para continuar meus estudos de Farmácia, fui pra Damasco até a guerra chegou para “lá”. Ai, começou, a guerra começou a apertar, apertar. Aí, tem um processo, um conflito, quando a pessoa fala, “Eu saio de lá, eu deixo meus afetos e os meus amigos, ou ficou aqui, enfrento a morte cara a cara?”.

Um dia, aconteceu uma explosão, tava indo para a faculdade estudar, num ponto de ônibus, onde tem muitas pessoas, para ir para o trabalho, para faculdade. E o que aconteceu, depois, os terroristas, eles esperam, esperam 15, 20 minutos, esperam aglomeração, para ter mais gente, porque aglomeração acontece para ajudar as pessoas feridas e tal, eles mandaram mais um carro-bomba para matar muito mais gente. Morreram 120 pessoas. Passei por 10 dias, sem água, sem luz, aí tive que sair para a rua, para comprar roupa íntima. Aí, assim que pisei na loja, aconteceu uma explosão horrível, eu me joguei na loja. Eu estava olhando pelo vidro da loja, olhando para fora para ver o que tava acontecendo, pessoas chorando e o choro não cabia nos olhos, de tanto choro. Eu via aquela mistura de cores que nunca me esqueço, é a prata cinza com vermelho.

Ai, depois, voltei para casa, falei, “Não tem como, eu tenho que seguir meus sonhos”. Falei com a minha tia, porque o sogro da minha tia fugiu por causa da Primeira Guerra Mundial. Veio para o Brasil, “estabeleceu”, casou, teve um filho, e um dos filhos voltou para a Síria para casar com a minha tia e trouxe para cá. A gente ligou para minha tia, “a gente” porque eu vim com meu irmão, ela nos acolheu.

Como eu não tenho cara de árabe, não tenho tipo físico do árabe, não senti o preconceito. Porque eu sei, eles chamam os sírios, os árabes de “homem-bomba”, “homem-bomba”. Mas, eu sofri outro tipo de preconceito, que eu considero um preconceito bem ruim mesmo. Porque quando a ‘pessoa” fala para mim, “Ah, você não é sírio não, você não tem cara de sírio, você não fala igual sírio”, esse preconceito é negar a minha origem, minha identidade.

Um amigo meu, Dudu, ele sabia que eu gostava muito do teatro e “não conseguia”, ele falou para mim, “Whissam, vem ver esse vídeo da minha prima. É um vídeo que saiu no Jornal Nacional, sobre o teatro dela, chama teatro dos sentidos. Ele mostrou, eu vi aquelas fotos, “alegria, cores lindas, poesia, pessoas alegres…”. Eu vi, eu via, me parecia muito solar. Isso é totalmente o contrário da guerra. Aí, eu me encantei, aí falei para ele… ele falou para mim que ela viria “na semana passada”, para Vassouras, para visitar, porque ela tinha família em Vassouras. Falei, “Opa, que notícia auspiciosa!”

Encontrei com ela e, naquela noite, ela começou a falar poesia. E, depois, ela falou para mim, “Whissam, você tem um poema para falar para a gente?”. Eu traduzi na hora um poema de um poeta sírio, chamado Nizar Qabbani, que é chamado “Escolhe”. Aí, eu recitei o poema. O poema diz o seguinte:

Eu te fiz escolher

Escolhe

Entre morrer nos meus braços ou morre desta “folhe”

Escolhe amar ou não amar.

É covardia que você não escolhe.

Aí, a gente “fomos” devorados pelo cupido. Eu vi nela, realmente, eu vi nela o amor, alegria, paz, poesia. Estava falando com ela, eu falei, “Paula, eu queria mostrar a outra cara da Síria, e que sempre conhecia, a cara bonita da Síria”. A gente fez poema, a gente fez espetáculos juntos e foi toda reconstrução de tudo que foi destruído na minha vida.

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