Legião Urbana — As Quatro Estações (1989)

o álbum mais vendido da Legião

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10 min readSep 17, 2020

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Se a Legião era mesmo uma religião, a mensagem do álbum anterior, apesar da boa venda de discos, não era o que Renato queria ter passado p’ra frente. A banda se cobrava muito por querer continuar na mesma toada do álbum Dois, com letras e músicas mais elaboradas. Isso aconteceria nesse ano, 1989, quando Legião Urbana “aconteceu” p’ra mim.

1989 foi um dos melhores anos da minha vida. Com 12 anos de idade eu e minha família voltávamos para Sobradinho, cidade satélite aqui de Brasília. Com uma condição financeira melhor, nós nos mudamos p’ra uma casa que marca minha vida até hoje.

As questões adolescentes já permeavam minha vida e a prova disso é que eu já tinha me apaixonado no primeiro dia de aula. Passou rápido. Essa paixão. É claro que vieram outras semanalmente.

Em 1989 eu passava boa parte do tempo jogando vídeo-game em um Atari 2600 que ganhei no natal de 1988. Eu passava boa parte do tempo também jogando bola, porque eu amava futebol. Quando estava em casa, eu ouvia mais rádio e discos do que assistia TV.

O rock nacional estava no seu auge. Todas as bandas nacionais viviam seu melhor momento e a indústria fonográfica ia bem. Marina, que ainda não era Marina Lima, era nº 1 nas paradas de sucesso com À Francesa; Os Titãs lançavam o aclamado Ô Blesq Blom; a banda Nenhum de Nós fazia sucesso com a versão de Starman do Bowie, intitulada O Astronauta de Mármore.

Não sei se você lembra a primeira vez que uma música começou a tocar no rádio ou em algum filme e você foi pego na hora. Isso aconteceu comigo em 1989. Indo da cozinha p’ra sala, a locutora Tina Roma, que trabalhava na Transamérica de Brasília em 1989 anunciava a música Há Tempos. Foi aqui, nesse dia que começou a minha história com Legião Urbana.

Eu ainda não tinha nenhum disco da banda, então a única maneira de ouvir Legião era ouvindo rádio. Como Há Tempos foi a música de trabalho do álbum, isso não era difícil, porque a música tocava toda hora.

A partir do As Quatro Estações a Legião não seria mais um quarteto, mas um trio. O álbum tem esse nome, porque Renato “gostaria que fosse sobre ciclos, a perda da inocência, você atingir um certo estágio em que perdeu alguma coisa e, ou vai para o lado deles, ou retrabalha e conquista isso. […] Então é isso de você estar ali na primavera, depois verão, chega o outono e caem as folhas e no inverno a árvore fica toda daquele jeito. Mas aí você pode escolher ter uma nova primavera. A maior parte das pessoas que eu conheço ficam no inverno e eu acho isso o maior problema delas”.

O As Quatro Estações é um disco sobre fases. Curiosamente o disco tem um tema cinza, não p’ra denotar tristeza, mas sobriedade e maturidade. O método criativo era o mesmo do álbum Dois: criar os temas instrumentais p’ra depois o Renato vir e jogar as letras em cima. O disco chega a ser bem espiritual e isso se explica por uma série de fatores. Primeiro que o Renato, uma vez perguntado sobre a canção Meninos & Meninas, explicou que o álbum era uma celebração à igreja católica. Mas o disco na verdade é cheio de citações bíblicas e de diversos livros e textos sagrados e isso vai da Bíblia, passando pelo Livro de Mórmon e Doutrina de Buda, entre outros.

Foi o disco mais vendido da banda vendendo até hoje 2,6 milhões de cópias. Este álbum marca a profissionalização da Legião. A partir daqui a banda teria músicos de apoio em shows e, por isso, shows mais estruturados.

O As Quatro Estações teve quase todas as músicas executadas em rádios. As exceções ficam por conta de Feedback Song For A Dying Friend e Maurício. Seis músicas, das onze do álbum, fizeram grande sucesso.

O disco saiu bem perto de um momento histórico para o Brasil, as primeiras eleições diretas com presidente escolhido pelo povo. Quem venceria essa primeira eleição seria Fernando Collor de Melo. O clima do final de 1989 era de muita esperança, o que não durou muito e seria assunto de letra da Legião no álbum do próximo texto. Vai vendo!

Faixa a Faixa

Há Tempos

Foi a música de trabalho do álbum. Fez muito sucesso nas rádios, chegando a ficar várias semanas na primeira colocação de rádios como Transamérica e Cidade. Fato que considero curioso para uma música que começa com “Parece cocaína, mas é só tristeza. Talvez tua cidade.”

A primeira frase é sobre Brasília, mas a música não se prende a isso. A música contém citações de um poema chamado Desiderata que data de 1692, escrito por Max Ehrman.

A música é sobre a perda da inocência e questões filosóficas. Renato encerra a canção pontuando nossa mania de facilmente desaprender sobre o valor das coisas. O trecho “lá em casa tem um poço, mas a água é muito limpa” é sobre nossa mania de nunca estar satisfeito e sempre querer mais.

Aqui Legião quebra o paradigma de formato de canção radiofônica emplacando nas rádios uma música com letra profunda e que não tem refrão.

Pais e Filhos

Essa canção era uma canção mal resolvida e quase fica fora do álbum. Era uma ideia que acabava tomando vários caminhos e parecia um monte de músicas dentro de uma só. Sua sonoridade inicial era mais densa, antes de se tornar uma música com muita presença de violão, mas que em certos pontos é um blues. Para resolver a questão da música e não perdê-la, já que ela parecia caminhar para algum lugar ainda não muito claro e tinha muitos sons que sobravam, o produtor Mayrton Bahia cortou pedaços de maneira artesanal e colou com fita adesiva (lembre que ainda não tinha Pro Tools).

A Letra de Pais e Filhos fala, entre outras coisas, de suicídio e as questões de dentro e fora de uma família. A ideia de Renato para fazer essa letra foi o fato de que os integrantes da Legião estavam se tornando pais.

Em 1994, no Programa Livre, no SBT, diante da reação alegre da platéia ao saber que a música ia ser tocada, ele soltou um “escuta, vocês sabem que essa música é sobre suicídio, né!?”.

Foi um dos maiores sucessos do álbum.

Feedback Song For A Dying Friend

Se chamaria inicialmente Rapazes Católicos, mas a banda odiou a ideia e considerou a letra impublicável. Aproveitando a base instrumental, Renato decidiu aproveitar uma letra em inglês, de 1985, e readaptá-la. É dedicada a um ex-fotógrafo americano chamado Robert Mapplethorpe. A música também foi dedicada à Cazuza, que morreria um ano depois, vítima da AIDS.

O encarte traz a tradução da letra, feita por Millôr Fernandes. Millôr negou inicialmente o convite, mas sabendo que era uma letra de Renato, aceitou depois que cobrar um “valor profissional” p’ra isso. Millôr comentou na época sobre a qualidade da escrita de Renato em inglês, perfeita. Renato foi professor de inglês na Cultura Inglesa. Millôr Fernandes é considerado o melhor tradutor das peças de Shakespeare para teatro.

Quando O Sol Bater Na Janela Do Seu Quarto

Esse é um álbum cheio de músicas com nomes longos. Essa é uma delas. É uma das letras que carrega bastante espiritualidade, baseado nas leituras que Renato fazia em quartos de hotel, principalmente. É uma colagem de textos encontrados na Doutrina de Buda.

Tem forte presença de violão, daquelas p’ra inspirar todo mundo a tocar no acampamento mesmo, já que — como sempre — é bem fácil.

Eu Era Um Lobisomem Juvenil

A música revela Renato como um observador do cotidiano, quando canta ontem faltou água/anteontem faltou luz/teve torcida gritando quando a luz voltou.

É uma canção longa, mas também tocou nas rádios. Tem um bandolim abrindo e fechando a canção. É uma música que fala de transição de fases — adolescência pra idade adulta — e construção de linhas de pensamento. Fala também sobre a intensidade das relações e sobre o processo que é amadurecer e amar ao mesmo tempo.

1965(Duas Tribos)

É uma homenagem à infância de Renato e realmente soa bem juvenil, mas não pueril. Aqui Renato fala da infância e das brincadeiras de infância, mas também fala da infância roubada e menciona a luta armada quando canta: Mataram um menino/Tinha arma de verdade/Tinha arma nenhuma/Tinha arma de brinquedo.

Ao contrário do que muita gente pensa, no final, quando canta “o Brasil é o país do futuro”, não era p’ra soar esperançoso, mas irônico. Era uma crítica à como o Brasil cuidava de suas crianças.

Nessa canção, inclusive, Renato lembra do paralelo que era crescer ouvindo sobre a ditadura militar:

Cortaram meus braços/Cortaram minhas mãos/Cortaram minhas pernas/Num dia de verão/Podia ser meu pai/Podia ser o meu irmão

Monte Castelo

Estourou nas rádios e tem trechos do Soneto 11, de Luís de Camões e do Capítulo 13 da 1ª carta do apóstolo Paulo aos Coríntios na Bíblia. Dado e Fernanda, quando viram a letra-embrião em cima da mesa no estúdio, saíram da EMI desesperados com o que leram, porque inicialmente a letra parecia um emaranhado de textos religiosos que não ia p’ra lugar nenhum. Mayrton Bahia conta que o guitarrista Dado chegou a chorar depois de ouvir a música pronta.

Maurício

Em 1990 Renato Russo finalmente falou de maneira aberta à Revista Bizz sobre sua orientação sexual. Muita gente tinha desconfiado dessa questão por causa da música Maurício e surgiu um boato de que essa música era p’ro seu namorado. Não era. A música era homenagem a um fã da cidade de Santa Maria-RS.

A música não caiu no gosto popular, talvez por causa da letra densa e desesperançosa.

Meninos e Meninas

Foi numa apresentação no Pacaembu, depois de já ter dado a entrevista p’ra Revista Bizz, que antes de cantar essa música, Renato falou: “vocês acharam que Maurício era p’ro meu namorado!? Não é não! É essa! Eu amo quem eu quiser!” e aí começou Meninos e Meninas.

Nos discos anteriores Renato tinha abordado o tema de modo codificado, nas canções Soldados e Daniel Na Cova Dos Leões. Aqui Renato fala abertamente no refrão sobre gostar de meninos e meninas.

A música estourou e foi incluída na trilha sonora da novela global Rainha da Sucata, mas Renato queria mesmo que ela fizesse parte de Pantanal, novela da extinta TV Manchete. Ele ficava puto quando ouvia a música tocar na novela da Globo.

À Bizz Renato disse que a música não falava só sobre essa questão, mas também era uma celebração à igreja católica, por isso tem as citações dos santos.

Sete Cidades

Daqui p’ra frente Renato considerava importante ter sempre as canções com temas românticos nos álbuns. Essa música é sobre o lado carnal do amor e a dificuldade de se amar uma pessoa fisicamente distante. Renato e Bonfá tocam gaita nessa canção.

Se Fiquei Esperando Meu Amor Passar

Outra música com título longo. E não é sobre ficar esperando o amor passar em algum lugar, mas acabar. É sobre o desafio de amar de novo depois de ter o coração quebrado e sobre a necessidade de querer que o amor tenha algum sentido.

Outra canção que estourou nas rádios e tem forte presença de violões e também não tem refrão. Ela se encerra com uma citação do evangelho de João: Cordeiro de Deus que tirai os pecados do mundo/dai-nos a paz.

Minha relação com esse álbum

Esse foi meu presente de Natal em 1989. Passei todas as tardes das férias daquele ano ouvindo esse álbum que atravessaria meu 1990 e marcaria minha entrada na adolescência. Só depois desse álbum é que eu ouviria os três dos textos anteriores.

Pouco depois que esse disco foi lançado eu me mudaria — mais uma vez — agora p’ra um apartamento na mesma cidade. Essa transição de residência, idade e escola teve o As Quatro Estações como trilha sonora, assim como a primeira garota que gostei (ouvia Sete Cidades pensando nela). A partir daqui as frases e canções da Legião começaram a falar de muitas crises que a gente começa a viver quando está nessa fase. Até mesmo na frase “já morei em tanta casa que nem me lembro mais”, presente em Pais e Filhos, eu me reconhecia. Eu já não conseguia contar quantos endereços eu tinha tido.

No final de 1990 eu me mudaria de novo, dessa vez para Belém do Pará, por conta de questões de saúde envolvendo minha vó materna. Era a cidade que eu morava quando saiu o quinto disco da banda, assunto para o dia 01/10, às 9 da manhã.

Existem marés e existe a lua. Existem canções.

Por Guímel Bilac

Fontes: Livro Memórias de Um Legionário, Wikipedia, Entrevistas de rádio e TV e acervo pessoal.

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