Legião Urbana — Que País É Este (1978–1987)
O álbum divisor de águas que é uma prestação de contas com o início da história da Legião.
Em 1987, depois de 4 anos em Belo Horizonte, eu e minha família estávamos de volta a Brasília. Acho que posso chamar esse ano de quando-eu-me-dei-por-gente. Tá certo que onze anos é uma idade que não é nada definida, né? Você não sabe se ainda é criança ou se já é adolescente.
Lembrando a questão financeira do Brasil, na época do primeiro disco tínhamos o Cruzeiro como moeda, na época do segundo disco era o Cruzado, que ainda era nossa moeda em 1987, mas era uma segunda versão de um mesmo plano econômico — o Cruzado II. A economia era a mesma, uma instabilidade sem fim que só alimentava desesperança. O clima no país era de revolta.
Em 1987 o sistema operacional Windows já existia, na sua versão 2.0. O sistema era distribuído em 9 disquetes de tamanho 5 1/4", cada um com capacidade de, hoje, míseros 1.22mb. Computação não era nada atrativo ainda pro usuário doméstico e, muito menos, algo acessível. Ainda existia curso de datilografia e a máquina de escrever ainda era muito usada.
1987 é o ano em que acontece o trágico acidente com Césio 137 em Goiânia, o maior acidente radiológico já acontecido fora de ambientes nucleares.
A Legião tinha acontecido. Dado Villa-Lobos conta que uma vez foi visitar uma fazenda em um lugar bem remoto e parando em algum lugar p’ra pedir informação p’ra localizar um endereço, encontrou um senhor sertanejo ouvindo Índios em um rádio de pilha. Pensou consigo mesmo: é… a gente aconteceu mesmo!
A Legião estava nas rádios de todo o país e na boca dos jovens. Aparições da banda na Globo se tornaram frequentes, principalmente no Globo de Ouro, que era uma espécie de parada de sucessos na TV.
Numa apresentação no aniversário da Revista Bizz, revista especializada de música na época, tocando a música Tempo Perdido, Dado conta que percebeu que as pessoas choravam vendo a banda se apresentar. Ali ele entendeu a profundidade do que a Legião estava fazendo e o que ela representava para as pessoas.
No entanto, a banda entrou numa crise criativa. Renato Russo não conseguia escrever novas letras e a banda não estava conseguindo criar nada. A banda tinha contra si um contrato assinado com a EMI, cuja cláusula principal era a banda gravar três discos entre 1985 e 1987. O prazo ia apertando e nada saía.
Foi então que a banda teve a ideia de aproveitar um material que seu público ainda não conhecia, o acervo musical da época do Aborto Elétrico. Eram músicas que remetiam ao lema do it yourself do punk e com as quais a banda ainda estava bem familiarizada. A ideia, que foi meio que uma carta na manga, foi aceita por todos.
Nesse período de crise criativa rolaram muitos boatos que a banda poderia estar acabando. Isso se deve ao fato que, nesse época, Renato ficou muito tempo em Brasília visitando os pais. Dado e Bonfá aproveitaram para tirar férias com suas famílias e o Renato Rocha tinha ido passar um tempo em seu sítio. Esse boato ficou bem forte quando, em entrevista à uma revista, Renato disse que a banda não estava conseguindo criar nada e não tinha nenhuma mensagem p’ra passar naquele momento.
No entanto, o boato logo perdeu sua força quando a banda entrou em estúdio em outubro de 1987 para gravar o terceiro álbum. Como as músicas já estavam todas prontas, não houve necessidade de muitos ensaios para se familiarizar com as canções. O período de gravação do terceiro álbum foi tão rápido que foram necessários apenas 15 dias para gravá-lo e mais 15 para mixá-lo.
Que País É Este (1978–1987) tem esse nome p’ra mostrar para o público que aquilo seria um fechamento de ciclo do que era herança da época punk do Aborto Elétrico. É um disco totalmente diferente do Dois, pois não houve nenhum processo criativo, nem mesmo de conceito para este álbum. Foi literalmente uma carta na manga para cumprir contrato com a gravadora.
O álbum foi lançado em novembro de 1987 e, por isso, bem mais trabalhando durante todo o ano de 1988 quando finalmente explodiu, principalmente por causa de Que País É Este, Eu sei e Faroeste Caboclo.
O álbum marca uma parte triste na história da Legião. Foi após o lançamento deste álbum que houve o episódio do polêmico show em Brasília, em junho de 1988. Um show que já começou errado desde sua preparação e marcou negativamente a passagem da banda por Brasília, registrando estatísticas que superaram números do carnaval daquele ano. Foram quatrocentos atendimentos médicos, quase duzentas pessoas feridas (muitas com fraturas). 64 ônibus foram depredados e a confusão gerou um prejuízo de 10 milhões de cruzados (próximo de 3 milhões de reais) envolvendo os danos à cidade e ao estádio Mané Garrincha. Muros eram pichados com os dizeres “Legião não volte nunca mais”, inclusive próximo a casa dos pais de Renato, na 303 sul.
Segundo Dado, no livro Memórias de Um Legionário, o clima de revolta que predominava no Brasil, a falta de estrutura brasileira para shows de grande porte (que ainda engatinhava), a má organização do espetáculo desde o dimensionamento de altura do palco, passando pela qualidade de som e segurança precária, somadas a um acervo muito cru e cheio de conotações de protesto, incendiaram o público. Renato, por sua vez, é quase que de modo unânime responsabilizado pelos nervos terem se acirrado durante a apresentação. Ao mesmo tempo que brigava com policiais que batiam no público, provocava e dirigia ao público palavras ofensivas e frases provocativas, do tipo “vocês nunca vão amadurecer!? Não atingiram a maioridade ainda não!? É por isso que a gente só volta aqui de ano em meio em ano e meio”. Já no início do show, que começou com duas horas de atraso, Renato foi atacado por alguém da plateia e bombas foram jogadas no palco.
Pessoalmente, penso que foi uma série de fatores. A Legião e sua produção minimizaram a importância do show para Brasília e montaram uma estrutura precária, desde a segurança até a qualidade do som. Meu irmão, que estava presente no show, chegou em casa contando que o som parecia vindo de um rádio de pilha e, dependo da distância que você estivesse do palco, não dava p’ra ouvir nada, só ruídos. Meu irmão disse isso uma vez, e Dado confirma no livro Memórias de Um Legionário, que chegou um momento em que parecia que estavam acontecendo dois eventos paralelos e chegou uma hora em que ninguém mais prestava atenção ao que rolava no palco. Renato também era uma bomba sempre prestes a explodir, reações como as que ele teve nesse show em Brasília não eram incomuns em shows da Legião e aconteceriam muitas vezes adiante. A Legião nunca mais fez shows em Brasília.
Embora eu, particularmente, não goste muito desse álbum, Que País É Este (1978–1987) é um dos álbuns mais vendidos da Legião, muito puxado pelo hit Faroeste Caboclo e também por Que País É Este. A arte do álbum também foi feita pela Fernanda Villa-Lobos. O encarte ficou simples, mas sofisticado por causa da presença de textos de Renato contando a história das músicas, fotos em alta definição e desenhos do Bonfá. Esse disco vendeu 1 milhão de cópias.
Além da pressão da EMI pelo cumprimento do contrato, o que pesou para que a Legião reaproveitasse músicas da época do Aborto era o medo que o Capital Inicial se apoderasse das músicas, o que já havia acontecido com Fátima, Veraneio Vascaína e Música Urbana.
Este álbum marca o aumento do atrito entre o baixista Renato Rocha e o restante da banda. Sumiços, atrasos nos ensaios e outros exemplos de falta de compromisso marcariam esse como sendo o último álbum com a presença do baixista.
Faixa a faixa
Que País É Este
Música composta e escrita em 1978, no fim do governo de Ernesto Geisel que no final daquele ano tinha revogado os atos institucionais. A música teve forte aceitação em 1987 e foi a música de trabalho do álbum, por se apresentar ainda contextualizada, mesmo quase dez anos depois. Seja nos shows da Legião ou nos de bandas que faziam cover da música, o refrão sempre recebia um retorno da plateia com “é a porra do Brasil!” depois que Renato cantava “Que país é este?”.
A sonoridade tem uma forte influência de I Don’t Care do Ramones.
Que País É Este caiu nas graças do povo por ser um forte retrato do que era o Brasil em 1987/88. Não à toa Cazuza também estouraria em 1988 com outra crítica social, a música Brasil.
Conexão Amazônica
Um selo na capa do vinil enfatizava que essa música tinha sua radiodifusão proibida por causa do conteúdo de sua letra que fala de drogas. A música foi gravada em um único take e tem uma cara mais tribal propositalmente.
Depois do Começo
Canção bem experimental da qual Renato revelou depois não gostar muito. Sua letra foi feita em cima da mesma base de uma canção da época solo de Renato, chamada Anúncio de Refrigerante.
Sentado embaixo do bloco sem ter o que fazer/Olhando as meninas que passam virou Vamos deixar as janelas abertas/Deixar o equilíbrio ir embora.
Renato achou a sonoridade da música muito despretensiosa — é um ska, mistura de rock com reggae — e depois comentou não ter gostado da letra.
Química
Essa já tinha sido gravada antes pelo Paralamas e inclusive foi a música que fez a EMI dar uma chance p’ra Legião. Tem letra bem pueril, o que fez Renato e Flávio Lemos brigarem na época do Aborto Elétrico. Renato dizia que era uma crítica a essa imposição da sociedade sobre passos que nos ensinam que devemos dar se quisermos ser bem sucedidos.
Tem a pegada punk do it yourself e foi gravada em um único take.
Eu Sei
Música da época solo de Renato, entre a fase Aborto e Legião, se chamava 18 e 21. É a mais madura do disco junto com Angra dos Reis e também tocou bastante nas rádios. A canção soa como um apontar para a herança poética do Dois que voltaria só no próximo álbum da banda.
Faroeste Caboclo
Composição do Renato de 1979. Aqui, assim como em Eduardo & Mônica, Renato se apresenta como um incrível contador de histórias em um conto musicado que passeia pelo baião, pelo rock, pelo repente e até pelo reggae.
Renato escreveu essa música em duas tardes e mostrou p’ro Dinho Ouro Preto, do Capital Inicial, que ficou impressionado. A canção carrega fortes traços de literatura, sendo uma narrativa com início, meio e fim. No papel original em que a canção foi datilografada por Renato havia uma anotação de que a música deveria ser gravada por Luiz Gonzaga.
Segundo Dado “o personagem da música tem sua vida atravessada pela violência, pela brutalidade das relações humanas e pelo preconceito de classe e de raça”. Embora a letra da música seja ficção, a Rockonha, festa citada na música aconteceu mesmo e muita gente “dançou”.
A música teve sua radiodifusão proibida, mas a genialidade de Renato e a forte aceitação do público, que passou a ligar nas rádios pedindo que a canção fosse executada fez, inicialmente, com que as rádios cariocas editassem a música tirando os palavrões e colocando uma canção de 9 minutos e dez segundos no ar. A música ocupava o lugar de três, mas isso não foi impedimento para que Faroeste Caboclo fosse a música mais executada nas rádios em 1988.
Lembrança curiosa que eu tenho é que, quem não tinha o disco, ficava de plantão perto de um toca-fitas para gravar a música de alguma rádio. A estratégia para aprender a letra, p’ra quem não tinha o disco, consistia em ir dando várias pausas e anotando a canção no caderno. Lembro nitidamente que nos intervalos da escola era comum você cruzar com uma batalha entre amigos de quem conseguia cantar os 159 versos da canção sem errar ou esquecer a letra. Vale lembrar que são 159 versos de uma canção sem refrão.
Angra dos Reis
Música inédita composta durante as gravações. O instrumental era uma parceria entre Renato e Bonfá, da qual Dado não gostava muito da sonoridade. Renato já tinha dado o disco como concluído quando Mayrton Bahia, produtor, disse que ele deveria escrever a letra e que o disco não seria terminado sem aquela canção. Renato saiu do estúdio batendo a porta, mas no outro dia voltou jogando a letra na mesa de Mayrton e dizendo “toma aí sua letra!”.
A letra ficou incrível e Renato depois pediu desculpas e agradeceu ao Mayrton pela insistência. Acabou se tornando uma das letras que Renato mais gostava.
A letra da canção faz menção à construção de uma usina nuclear na cidade de Angra dos Reis.
Mais Do Mesmo
Seria o nome do álbum e é também inédita. Mais uma com letra que é uma crítica social. Apesar da pegada punk, tem letra e qualidade sonora mais trabalhada, graça ao som das guitarras.
Meu relacionamento com este álbum
Em 1987 eu ouvia mais Engenheiros do Hawaii, por influência de um amigo, do que Legião Urbana.
Lembro nitidamente, mesmo tendo ainda 11 anos de idade, que muita gente deixou de ouvir Legião por causa do acontecido em 1988. Havia uma relação de amor e ódio entre público e banda. Mas isso era mais em Brasília, até por que a Legião tinha feito outros shows pelo Brasil que deram muito certo.
Assim como os dois primeiros álbuns, eu só fui ouvir esse depois do As Quatro Estações (1989), quando eu definitivamente me tornei fã da banda. Ganhei este álbum em janeiro de 1990, depois de ter ouvido o As Quatro Estações e o Dois, que eram extremamente carregados de uma sonoridade mais aperfeiçoada e letras mais maduras. É um dos álbuns que eu sempre ouvi pouco, por achar que — apesar da proposta de prestação de contas com o início da história da banda — destoar do restante da discografia e remeter a um tempo de letras mais rebeldes e menos poéticas da Legião, em algumas canções.
Os três primeiros álbuns da banda não deixavam claro p’ros fãs sobre o que esperar da Legião num possível quarto álbum. Seria rebeldia crua ou poesia elaborada? Mais violão ou mais guitarra? Olhando de longe hoje, considero que o Que País É Este cumpriu seu papel de ser um divisor de águas na história da banda. Este álbum infelizmente não marcou só uma divisão de águas, mas uma ruptura da banda com Brasília, de certa forma, por causa do acontecido no Mané Garrincha em junho de 1988.
No próximo texto, dia 10/09, falarei do As Quatro Estações. Esse álbum marca quando Legião Urbana aconteceu p’ra mim e a partir daqui muitos dos próximos álbuns vão se cruzar muito com minha história.
Pesquisa e texto por Guímel Bilac / Revisão de texto e contexto por Jordana Machado
Ouça No Volume Máximo!
Fontes: Livro Memória de Um Legionário, Wikipédia, Entrevistas de rádio e TV, Documentário Rock Brasília — Era de Ouro, do Vladimir Carvalho e acervo pessoal.