Amizades nascidas nas rachaduras do asfalto

Maíra
1/6 de Chance
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4 min readFeb 23, 2016

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Um delírio coletivo

Foi um tempo muito feliz o que trabalhamos juntos. Estávamos numa startup diferente das outras. Parecia o sonho acontecendo — tínhamos investimento, tínhamos carta branca, tínhamos recursos ilimitados e juventude para aguentar os bares depois do expediente.

Foi um tempo legal.

Nós não fazíamos os jogos mais legais do mundo, mas um dia faríamos. Foi uma promessa como nenhuma outra. Lembro de estar sentada na mesa durante a entrevista e ser completamente convencida de que dessa vez ia dar certo. Tinha absolutamente tudo pra dar certo. Botava fé.

Por outro lado, saí da entrevista com um pé atrás. O tom era de “teje contratado” e eu pensava: sério mesmo? Não tenho experiência nenhuma. É fácil assim? Ninguém me disse que era fácil assim.

Alguma coisa ali não tava certa. Lógico que isso eu ia aprender na prática muito em breve; meu pé atrás não impediu de juntar alguma fé na humanidade e topar o trabalho.

Eram dias confusos. Às vezes era estar no topo do mundo, fazendo coisas que ninguém mais está fazendo no Brasil, às vezes era olhar pro próprio trabalho e questionar tudo o que você considerava que tinha como habilidade. Por quê eu estou fazendo isso mesmo? Isso nunca vai dar certo. Vai dar certo? Que projeto é esse?

Então dava o horário do café da tarde e ficava tudo bem de novo.

Não lembro quando exatamente tudo começou a ficar muito estranho. A liderança era, como é que vou dizer isso? Ruim. A liderança era ruim mesmo. Não tinha plano de ação, quem era de gosto ia para o topo (e por gosto digo gosto, do verbo flerte), bagunça na casa. Não tinha liderança. Tinha promessas, muitas. De fazer coisas incríveis, de fazer história. Dou o braço a torcer, a lábia era boa.

A empresa se fundiu com uma agência de publicidade. De novo parecia que dali as coisas não podiam ficar ruins — exceto que agora faríamos uns advergames, mas o que fosse necessário pra cumprir os planos maiores.

Só que, e foi quando ficamos tristes de verdade, lábia tem limite. Em algum ponto você tem que mostrar resultado dessas promessas todas. E com recursos descendo o ralo e problemas de liderança, os resultados simplesmente não compareceram ao sonho.

Aí começaram as demissões.

Teve um dia que eu vi a cena: ele não aguentava mais.

Ele estava fazendo port de um jogo, a parte de mobile, mesmo que o jogo não tenha sido aceito na loja (mas vamo que vamo, né). Semanas antes outro havia abandonado o barco, e me disse antes de sair: “vocês não deviam ficar aqui”.

Naquele dia assistimos o crachá voar da mão dele pra mesa. A frase eu guardei: “você é a pior chefe que já tive na vida”. Não foi pra mim, mas senti o peso da afirmação. Ele saiu de cabeça erguida. Nós ficamos, embasbacados. Era só mais um episódio de uma sucessão de demissões e desistências, até o dia em que tudo descambou.

Era um dia de trabalho dentro da normalidade do estúdio — todo mundo trabalhando mas ninguém sabendo muito bem o que estava fazendo. A chefia não parecia muito contente, mas era uma constante nos últimos tempos. Os projetos penavam em sair do papel e nada tinha sido lançado ainda.

Lá pelo fim da tarde, convocaram uma reunião geral. Quase geral.

Passaralho. Todo mundo demitido. Não tava dando resultado, custo alto, pouca produtividade. Tudo fazia sentido, mas a culpa não era dos funcionários. Alguém falou sobre isso. Não que fizesse diferença.

Voltamos para os computadores para tentar salvar algum trabalho dos últimos meses. Tudo bloqueado.

Foi como ser enxotados.

Fomos pro bar. Liguei pra uma de nós que saiu mais cedo no dia pra avisar que ela foi demitida. Até hoje ela não foi notificada disso oficialmente.

Lembro de flashes: de choro, de abraços, de silêncios constrangedores, de tequila pedida e não paga, de um girando no poste fingindo que era a Bayonetta e, num geral, da tristeza.

A gente foi muito feliz mesmo naquele período.

O grupo de e-mails de quem jogava junto no servidor de Minecraft virou o ponto de encontro. Já fazem uns bons anos e a gente ainda conversa todos os dias, se encontra de vez em quando pra ver uns filmes, jogar umas coisas, tomar cerveja, falar besteira e lembrar as histórias absurdas. E eu não estive presente em nem metade das histórias absurdas.

Pelo menos nessa selva de pedra às vezes o asfalto racha e as amizades brotam.

É o que fica.

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Maíra
1/6 de Chance

Designer de narrativa. Escrevo (às vezes) anedotas sobre o universo, jogos e outros mistérios.