Do passado ao futuro: como Cruyff e Koeman podem inspirar Setién e Frenkie

Tomás da Cunha
11 Médios
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5 min readApr 2, 2020

Antes do tiki-taka dominador de Pep Guardiola, Johan Cruyff tinha construído as bases para um Barcelona ganhador e com ADN próprio. O legado deixado pelo holandês em Camp Nou, directa ou indirectamente, iria inspirar treinadores do futuro e uma geração de jogadores que deixaria uma marca eterna no futebol mundial. Essa Dream Team venceu a primeira Taça dos Campeões Europeus do clube e conquistou quatro ligas consecutivas, roubando a hegemonia ao Real Madrid da Quinta del Buitre.

Um dos admiradores assumidos dessa equipa blaugrana chama-se Quique Setién. De resto, a aposta no ex-treinador do Las Palmas e do Betis entende-se pela necessidade de revitalização de uma identidade perdida nos últimos anos — tirando qualquer dúvida, Xavi Hernández também foi abordado. Ao contrário de Ernesto Valverde, defende incondicionalmente a ideia que levou o Barcelona aos maiores sucessos de sempre e garantia a aproximação ao passado.

“Só quando vi o Barcelona de Cruyff comecei a perceber como as coisas funcionavam. Aprendi muito com eles” — Quique Setién

Apesar disto, existe uma mudança estilística muito significativa em relação ao técnico anterior e uma conjuntura que dificulta a tarefa do novo treinador (crise directiva, temporada a decorrer, inúmeras lesões…). As dores de crescimento são perfeitamente naturais. Há, no entanto, uma opção de Setién difícil de compreender, tanto a pensar no presente como no futuro: a forma como tem utilizado Frenkie de Jong, desperdiçando as qualidades de um dos melhores médios do mundo.

No Willem II, clube em que despontou, o holandês actuava na zona ofensiva do meio campo, perto dos avançados, mas a evolução em Amesterdão fê-lo baixar no terreno. Não sendo um desequilibrador de último passe, Marcel Keizer experimentou-o como central, dando-lhe o protagonismo na saída de bola. Essa decisão do antigo treinador de Ajax e Sporting mudaria a carreira do jogador e o futuro do Ajax. Vendo todo o campo à frente, interpretando os movimentos da própria equipa e do adversário, Frenkie tornou-se o epicentro ofensivo, dominando a zona de construção e facilitando a ligação com o ataque. Chamar-lhe central é redutor, tal a liberdade de que beneficiava; importa, sobretudo, perceber a dimensão que atingiu dentro das novas funções.

Mais tarde, Erik ten Hag iria aproveitar o trabalho feito e elevar o nível do jogador no super Ajax de 18/19 — veja-se a exibição no Bernabéu, principalmente. No 4–2–3–1, um dos mecanismos habituais passava pela colocação de Frenkie sobre a esquerda, perto dos centrais, para pegar no ataque. Aparecia sempre na base da jogada, oferecendo soluções através da condução (tem uma mudança de velocidade imparável e percebe como poucos o conceito de atrair e soltar) e do passe. Roda sobre a pressão contrária, muitas vezes no limite do risco, com a confiança de quem sabe o que vale. Entende quando e como deve associar-se. É um jogador total, que precisa de contacto permanente com a bola — procura-a em vez de esperar por ela. Perde a essência se o amarrarem. Neste ponto, pensar-se-ia que o Barcelona estava consciente das potencialidades do jogador.

Em Camp Nou, Frenkie baixou drasticamente o nível em relação à época passada, mais pelas escolhas dos treinadores do que por responsabilidade individual. Não se adaptou, para já, a um contexto completamente diferente daquele que tinha no Ajax, sobretudo em termos de rigidez posicional. Valverde, com um futebol estático e sem alegria, deixou um cenário em que várias figuras estavam longe do rendimento ideal, mas a chegada de Setién prometia outro aproveitamento das características dos jogadores. Para já, o holandês continua a desempenhar funções que o condenam ao papel de actor secundário.

Há um nome que não pode ser ignorado na realidade do Barcelona: Sergio Busquets. Enquanto durar, tem estatuto e qualidade para se manter como indiscutível. O peso de Busi ajuda a entender a colocação de Frenkie como médio entre linhas, longe do jogo, profundo no corredor central e procurando movimentos sem bola que contribuam na dinâmica ofensiva. Em Nápoles, por exemplo, pouco participou na construção, ao contrário de Rakitic. Cresceu num cenário de liberdade posicional e interpretativa, com a influência que se sabe, vendo-se sacrificado num colectivo em que é apenas mais um. Empata-se o futuro para segurar o presente.

Auto-passe e golo de Koeman contra o Trabzonspor

Ronald Koeman, actual seleccionador holandês, chegou ao Barcelona em 1989, já depois de ter sido campeão europeu pela Laranja Mecânica e pelo PSV (final frente ao Benfica). O clube catalão contratou Bakero, Laudrup, Stoichkov ou Romário, mas o impacto dessa transferência seria estrondoso. Em campo, o central/médio iria afirmar-se rapidamente como a extensão do treinador, demonstrando um entendimento do jogo muito superior à maioria. No célebre 3–4–3 losango, todo o futebol ofensivo dos catalães passava pelos pés do cérebro. Como Cruyff percebera uns anos antes, não se tomam decisões correctas sem ver e analisar primeiro. Jogando de trás para a frente, Koeman criava vantagens constantes para si e para os colegas — posicionando-se de forma a permitir a progressão dos centrais exteriores, por exemplo. Destacava-se também pela qualidade do remate, marcando uma quantidade de golos invulgar e contribuindo decisivamente em vários títulos (Copa do Rey 89/90 ou Taça dos Campeões Europeus 91/92). Fixou-se em zonas recuadas para ajudar a equipa a atacar melhor. Foi um jogador de culto, completo e com um talento extraordinário. Cruyff sabia isso quando o contratou.

A construção da Dream Team dá pistas a Setién sobre como aproveitar um holandês construtor e associativo. Ao contrário de Koeman, contratado ainda numa fase embrionária do projecto, Frenkie transferiu-se para um Barcelona a aproximar-se do fim de ciclo e com um plantel cheio de insubstituíveis. Tendo visto a evolução de de Jong desde o início, afirmo sem qualquer receio que se trata de um médio raro e potencialmente dominador na elite do futebol mundial durante os próximos anos. No cenário actual, com as funções que lhe são atribuídas, dificilmente vai alcançar o nível que mostrou no Ajax. Ainda falta a conexão que Koeman teve com Cruyff.

Neste período de pausa, aproveitei para recuperar alguns jogos marcantes. Fica o guia:

- Barcelona-Sampdoria (Taça das Taças, 88/89)
- Barcelona-Real Madrid (Copa do Rey, 89/90)
- Manchester United-Barcelona (Taça das Taças, 90/91)
- Barça-Benfica e Barça-Sampdoria (Taça dos Campeões Europeus, 91/92)
- São Paulo-Barcelona (Taça Intercontinental, 92/93)
- Barça-Real Madrid (La Liga, 93/94), Barça-Porto e Barça-Milan (LC, 93/94)

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