O que fazer com o “jogador moderno”? Entendê-lo

Tomás da Cunha
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4 min readFeb 5, 2020

O futebol mudou. Aqui não vamos abordar as melhorias na preparação física ou a difusão do conhecimento táctico nos últimos anos. Desta vez, o foco será o lado humano. O futebol mudou porque os jogadores crescem numa realidade distinta, com ferramentas infinitas ao seu dispor. Definem objectivos irrealistas, incentivados por pais e agentes, e imaginam um mundo onde só existem facilidades. Há pressa para chegar ao destino final, sem passar pelo processo natural de desenvolvimento — tentar, errar, voltar a tentar e ser paciente.

Tudo isto leva-nos a uma conclusão óbvia: se os jogadores são outros, os treinadores não podem trabalhar da mesma forma. É necessário encontrar novos métodos de educação e liderança, tanto a nível de formação como no alto rendimento. Com base na entrevista de Thomas Hitzlsperger (antigo internacional alemão e actual CEO do Estugarda) ao The Athletic, que fiz questão de traduzir, procuramos entender o “jogador moderno”, sendo certo que cada um terá características próprias.

“O que encontrei foi um cenário em que as coisas que os motivam já não são as mesmas que me motivavam. Com as redes sociais, os jovens querem ser proeminentes, conhecidos e atractivos para muitas pessoas. Têm outra mentalidade. Continuo a pensar que querem ter sucesso, mas não estão tão dispostos a esforçar-se para tal”.

“Fico surpreendido como é que tão poucos jogadores estão preparados para trabalhar mais do que os outros e chegar ao topo. Parece uma coisa do passado! Esperam que o treinador apareça com ideias fantásticas para fazer com que tudo resulte. É tudo responsabilidade do treinador. Mas há que meter a responsabilidade neles também. Não pensam ‘o que posso fazer para melhorar?’. Se têm um problema, não pensam, ‘preciso de resolvê-lo’. Olham para o lado à procura de alguém que faça isso por eles.

“Vejo muitos jogadores que passam a responsabilidade para os outros: desde muito novos viveram assim. Têm agentes que fazem tudo por eles. É mais fácil procurar os outros para lhes resolverem os problemas”.

Esta realidade não é exclusiva da Alemanha e terá pontos de contacto com diversos clubes espalhados pelo mundo. A partir do momento em que se identifica a mudança, há que acompanhá-la. Uma das poucas verdades absolutas do futebol diz-nos que o jogo é dos jogadores — e continuará a ser sempre. Mais do que nunca, urge pensar na formação humana e não apenas no futebolista. Os treinadores de jovens, não sendo pais ou professores, têm de reconhecer o papel de referência que assumem inevitavelmente.

“Queremos melhorar a nossa forma de educar os jogadores enquanto se tornam futebolistas, para poderem chegar à primeira equipa. Não é impossível, mas o caminho é longo”. Hitzlsperger demonstra que a transmissão de valores, em Estugarda, já está no topo das prioridades. Outro exemplo é o do Nordsjaelland, clube dinamarquês. Procura desenvolver o “jogador do futuro” e escrevi sobre isso no Twitter (clicar para ver).

Na época passada, tive o privilégio de treinar uma equipa de sub-17 e a experiência foi altamente enriquecedora, sobretudo porque me permitiu lidar directamente com os problemas acima referidos. Já não se marca golos só pelo prazer de jogar futebol e vencer o adversário, mas também porque anunciar o feito no Instagram vai trazer alguma notoriedade.

Não se trata de um exclusivo das novas gerações: todos desejam brilhar em casa e na escola, mas a resistência ao fracasso é cada vez menor. E não devia. Falhar faz parte. São poucos os que conseguirão vingar. Ao invés de irem à luta, tentando provar ao treinador que está errado por os deixar dois jogos no banco, os jovens procuram os pais — ou os agentes, se for o caso. Mudar de clube não dá tanto trabalho. Só não devia esquecer-se a ideia de preparação para a vida, que o futebol também serve para isso. Um pai que grita da bancada para o filho não entrar em campo (situação verídica) não está a ajudá-lo. Os jogadores têm quase sempre consciência daquilo que valem, mas a pressão exterior leva-os a tomar decisões precipitadas. Assim, reforça-se a necessidade de ajustar expectativas.

No alto nível, José Mourinho também já admitiu as dificuldades que teve para se adaptar aos jogadores actuais. Traduzi algumas afirmações do treinador português na BeIN Sports. “No futebol moderno existe um problema entre o treinador e o jogador. Já não estamos no tempo em que o treinador, sozinho, tem o poder suficiente para ter uma relação, educar e confrontar jogadores que não são os melhores profissionais. A estrutura tem de estar lá para proteger o treinador e para os jogadores sentirem que não podem chegar a uma situação em que se sentem mais poderosos do que costumavam ser”.

Mourinho é, porventura, o técnico que mais sofreu com a mudança geracional. Tinha na gestão de balneário um argumento diferenciador e era idolatrado por diversos jogadores. No Man United, não conseguiu encontrar essa química com o grupo que liderava. O treinador, quase sempre visto como o elo mais fraco numa estrutura, tem de atribuir ao lado relacional a importância que merece. Sem a confiança dos jogadores, não há modelo que sobreviva. Vencerá o “treinador moderno”. O sucesso de Klopp começa aí.

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