Portugal no Euro’1984: de Bento a Jordão, um olhar à distância sobre “Os Patrícios”

Tomás da Cunha
11 Médios
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7 min readApr 8, 2020

Ver futebol de outros tempos, conhecendo ou não o resultado, permite uma experiência de análise diferente do normal. Eliminando os aspectos emocionais, sobra-nos uma visão totalmente focada na organização das equipas e nas características dos jogadores. Podemos (e devemos) voltar atrás, mas dificilmente conseguiremos traduzir uma determinada realidade com a sabedoria de quem a vivenciou. Recuperar o Europeu’1984, tão marcante para o futebol português, é um exercício de nostalgia para alguém nascido na década de 70 — tal como o Europeu’2004 ou o Mundial’2006 para aqueles da minha geração. Não me atrevo a dizer o que representavam Bento, Sousa, Chalana, Jordão ou Carlos Manuel para todos eles. A forma como um determinado jogador nos marca na infância tem um carácter pessoal e a nossa ideia de futebol constrói-se a partir desses ídolos.

Portugal não participava numa grande competição internacional desde 1966 e conquistou o bilhete para França com uma vitória sobre a União Soviética, na última jornada do apuramento — Rui Jordão, de penálti, bateu o histórico Rinat Dasaev. Otto Glória, que tinha conduzido a selecção nacional no Mundial inglês, demitiu-se após a goleada sofrida em Moscovo (5–0) e a fase de qualificação foi concluída por um quarteto de treinadores: Fernando Cabrita (oficialmente, o técnico principal), Toni, José Augusto e António Morais, os mesmos que iriam liderar a equipa na prova. Na altura, Porto (9 jogadores) e Benfica (8 jogadores) dominaram a convocatória, com o sportinguista Rui Jordão a intrometer-se nas escolhas.

O 11 base de Portugal

Os jogos contra RFA (campeã em título) e Espanha implicaram uma postura mais contida, com respeito em relação ao poderio dos adversários. O momento libertador foi o primeiro golo de sempre num Europeu, marcado por António Sousa na segunda jornada. A partir daí, e mesmo tendo sofrido o empate no duelo ibérico, Portugal ganhou confiança nas próprias capacidades e assumiu-se no confronto frente à Roménia, entrando com dois avançados. Antes, a equipa titular estava perfeitamente identificada na cabeça do quarteto seleccionador.

Manuel Galrinho Bento, aos 35 anos, era o dono da baliza. Fica na memória a segunda parte da meia-final, evitando de forma heroica uma derrota certa. As características físicas invulgares num guarda-redes (1,73m) faziam com que cada defesa tivesse uma dose de espectacularidade envolvida. Enchia a baliza, voando de um lado ao outro. Não se amedrontava frente a nenhum adversário e assumia o risco (loucura, por vezes) de sair dos postes para reduzir o ângulo ou ganhar a bola no ar. Transmitia, aparentemente, muita confiança à equipa.

Álvaro Magalhães aparecia como o intruso benfiquista num quarteto defensivo maioritariamente azul e branco. À esquerda, sendo destro, não se destacava pela qualidade técnica e tinha algumas dificuldades para dar sequência às jogadas de ataque, mas aventurava-se no flanco com frequência. Entendia-se com Chalana, oferecendo profundidade para compensar a presença interior do médio. Era muito agressivo, tanto a atacar como a defender. O ponto alto do lateral no torneio foi a assistência para António Sousa, no jogo com Espanha, não desistindo de uma bola no meio campo ofensivo.

Do outro lado, João Pinto não abandonava tantas vezes a posição, preferindo resguardar-se para não comprometer a equipa. Pelas limitações com bola, sabia que não seria uma mais-valia no processo ofensivo. Defensivamente, procurava impor-se nos duelos físicos, mas sofria contra adversários mais explosivos e dotados tecnicamente. Passou pelo torneio com uma participação discreta.

A dupla de centrais, não sendo extraordinária, demonstrou competência suficiente para sair com nota positiva. Só tinham funções defensivas e não jogavam num raio de acção muito amplo, cumprindo a principal tarefa — controlar os avançados contrários através de marcações individuais — sem errar de forma grosseira. Lima Pereira, com uma envergadura física notável, destacava-se na cobertura a João Pinto e impunha-se no jogo aéreo. Eurico, campeão nos três grandes clubes portugueses, encontrou mais dificuldades para fechar o espaço deixado pelas subidas de Álvaro Magalhães e nem sempre foi eficaz no timing de antecipação, mas demonstrou contundência na protecção da área. Estavam isentos de responsabilidades ofensivas, entregando quase sempre a bola aos médios próximos. Ainda assim, Eurico arriscava mais vezes o passe vertical para bater as linhas do adversário.

O golo marcado por António Sousa, ao minuto 2:10

Não foi propriamente surpreendente o nível de conhecimento no meio campo, tendo em conta que todos actuavam no Porto. Não sendo um exemplo de rigor posicional, Jaime Pacheco valia-se de um pulmão inesgotável para destruir ataques adversários. Dedicava-se às missões defensivas, embora não rejeitasse a oportunidade de conduzir jogadas de quando em vez. Saía-lhe mais suor do que magia. António Sousa era aquele tipo de médio que descrevemos como um box-to-box. Participava activamente em todos os momentos do jogo, tinha outra relação com bola e chegava perto da área para atirar à baliza — muita classe no golo a Espanha. Fazia a diferença de trás para a frente.

Frasco ficou para o fim porque justifica um olhar mais atento. Não sendo favorecido fisicamente, já que nem chega a 1,70m, distinguia-se pela superior qualidade técnica e pela forma como resistia à pressão, decidindo com critério. Era muito difícil tirar-lhe a bola, como se percebeu pelo número considerável de faltas que sofreu (também disputava os duelos de forma agressiva, diga-se). Rodava sobre si próprio, mudava o ritmo, encontrava soluções para se associar. Criar vantagens a partir das características individuais é um sinal inequívoco de inteligência. O baixinho foi um privilegiado a nível de talento e trazia uma dimensão estética altamente valiosa ao jogo de Portugal. Não marcava muitos golos (argumento sempre colocado em cima da mesa), mas correspondia a um perfil de médio muito em voga no futebol actual.

Fernando Chalana, uma das figuras incontornáveis desta selecção, saiu lesionado no jogo com a Roménia, mas recuperou a tempo de deixar marca na meia-final, com dois cruzamentos teleguiados para Jordão. Esteve envolvido em dois dos golos mais marcantes do futebol português, portanto. Tinha um estatuto reconhecido por colegas e treinadores e gostava do protagonismo. Era comum vê-lo a ir buscar a bola perto dos centrais. Tornava-se, assim, no quarto elemento do meio campo, embora sem dispensar o papel de extremo que serve o(s) avançado(s). Jogava sempre em excesso de velocidade, contornando adversários, preferencialmente com o pé esquerdo. É um daqueles que preferimos ter na nossa equipa do que no outro lado.

Carlos Manuel defendia o corredor direito, mas funcionava como uma espécie de segundo avançado no processo ofensivo. Surgia em zonas interiores, com mais campo para desequilibrar em velocidade. Foi, no entanto, a peça mais apagada do ataque português no Euro e até perderia a titularidade. Demonstrou-se incapaz de cumprir defensivamente e, em simultâneo, representar uma ameaça para o adversário, precipitando-se nas decisões com bola. Não está em causa o valor do jogador, mas não correspondeu às expectativas.

O festejo de Rui Jordão, aos saltinhos, é a primeira imagem que me vem à cabeça se pensar nesta competição. Merecia que o jogo acabasse aos 115 minutos. Concretizou essas duas oportunidades de primeira, com classe. No resto do torneio, foi obrigado a participar muito longe da baliza contrária, mostrando-se permanentemente em apoio para dar opções à equipa. Quando se virava e conseguia arrancar em velocidade não havia como o parar. Era um goleador nato, juntando instinto e técnica de remate. Ambos os golos na meia-final são de difícil execução e estão fora do alcance da maioria.

Fernando Gomes e Nené foram os outros dois avançados utilizados, mas o jogador do Benfica ficou ligado a dois momentos decisivos: pela positiva, o golo frente à Roménia que apurou a selecção nacional para a fase seguinte; pela negativa, o falhanço na cara de Joël Bats que daria o 3–1 no prolongamento, deixando Portugal com um pé na final. Como o próprio já admitiu, ainda tem pesadelos com esse lance. A eliminação iria surgir de forma bastante ingénua, com Álvaro Magalhães a fazer um sprint para se juntar ao ataque e a desproteger o flanco. Aos 119 minutos, depois de sofrer o 2–2, a equipa desequilibrou-se e permitiu a reviravolta. Inglório, no mínimo.

Guardei o último destaque para um francês — e não é Michel Platini. Jean Tigana, o melhor em campo na final, jogava de cabeça levantada, com a camisola comprida para fora dos calções e uma subtileza singular, espalhando qualidade técnica a cada toque na bola. Brincava com as velocidades, driblava de forma natural e desequilibrava através do passe. Lançou Bruno Bellone para o golo que confirmou o título da selecção da casa. Podiam ter sido Chalana e Jordão.

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