The English Game — como o jogo de alguns passou a ser de todos

Tomás da Cunha
11 Médios
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5 min readMar 23, 2020

“A essência da obsessão das pessoas pelo futebol consiste na ideia de que é muito, mas mesmo muito melhor do que trabalhar”. Arthur Hopcraft, jornalista e escritor inglês do século XX

Fergus Suter, Jimmy Love, Pelé, Cruijff, Maradona, Cristiano Ronaldo, Lionel Messi. Se pensarmos em talento e mediatismo, há dois intrusos facilmente identificáveis. Os operários de Glasgow são protagonistas na nova série da Netflix, que retrata o início da transformação de um jogo orgulhosamente amador num negócio que envolve milhões de pessoas em todo o mundo. The English Game mostra-nos a primeira conquista de uma equipa de trabalhadores na FA Cup, com um significado muito mais poderoso do que uma mera taça.

Em 1879, o futebol ainda pertencia a uma elite de antigos alunos de colégios ingleses (daí a origem de clubes como o Old Etonians ou o Old Carthusians). Nascidos e criados em famílias ricas, não precisavam de ganhar dinheiro como jogadores e defendiam até à morte a ilegalidade do profissionalismo e a lealdade na competição. A Football Association, que era controlada pelas mesmas pessoas, tentou fazer de tudo para travar a ascensão de uma nova era, onde o status deixaria de importar.

Com o objectivo de vencer a Taça de Inglaterra, o Darwen — formado por trabalhadores das fábricas de algodão — pagou a Fergus Suter e a Jimmy Love para se juntarem à equipa, quebrando as regras em vigor. Vindos do Partick, os escoceses levavam ideias para um jogo de passe e com uma distribuição mais racional no terreno. Mas o lado táctico foi o menos importante. Começavam a surgir os primeiros heróis do povo, que aproveitaram o futebol como um elevador social que nunca teriam de outra forma. Eram exemplos a seguir, pela capacidade de fugir a uma vida miserável. Agora, carregavam a esperança de outros.

Ganhar ou perder um jogo deixou de ser apenas ganhar ou perder um jogo. Os clubes tornaram-se representantes de algo muito valioso — o orgulho da comunidade, da classe ou da nação em que se inserem. A necessidade de afirmação individual exprime-se dentro de um jogo colectivo, tanto por jogadores como por adeptos. Na final, vemos o presidente do Darwen a torcer pelo Blackburn, reconhecendo que havia uma causa superior e que, no fundo, também seria um êxito pessoal. Entende-se, assim, a exigência em relação aos clubes.

O povo de Darwen pagou a viagem para a desforra com o Old Etonians e Fergus Suter perguntou se “as pessoas não precisam desse dinheiro”. Recebeu como resposta uma das frases mais fortes da série: “Talvez. Mas também precisam de futebol”. Para quem pouco tinha, não havia nenhuma distracção tão poderosa como aqueles 90 minutos. The English Game coloca as pessoas antes do jogo e, por isso, cumpre o propósito com elegância e simplicidade.

O caminho para a democratização do jogo levou à aceitação do profissionalismo como forma de igualdade entre as elites e os operários, cansados do quotidiano e sem tempo para treinar — não se distraiam no diálogo entre Fergus Suter e Arthur Kinnaird sobre o tema. Este último, como disse Alma, percebeu o poder do futebol na vida social e foi despertando para a necessidade de dar as mesmas condições aos que partiam em inferioridade.

“O crescimento do futebol não é uma nota de rodapé na história social do século XX, mas um verdadeiro fio condutor dessa história”. Arthur Hopcraft, no fabuloso The Football Man

Depois de se tornarem figuras no Darwen, os escoceses iriam transferir-se para o Blackburn, que surge na série como o clube mais moderno em termos de visão negocial. O presidente Cartwright procurava juntar os melhores jogadores do país e seduzia-os com propostas financeiras praticamente impossíveis de recusar. Além disso, começava a apostar na publicidade para atrair as pessoas e até organizou um “amigável” com o Darwen em que as receitas seriam divididas.

A transferência de Fergus Suter e Jimmy Love para o Blackburn foi o rastilho que incendiaria o futebol. Os ex-companheiros de equipa sentiam-se enganados e queriam guerra, os adeptos falavam em traição, os gentlemen reforçavam a ideia de ilegalidade e pobreza moral. Isto provocou uma descarga sentimental no suposto amigável, com uma batalha campal que seria aproveitada para colar aos nortenhos a imagem de selvagens (nada que não aconteça actualmente em relação aos sulistas italianos, por exemplo). Nascia a rivalidade, nem sempre saudável, mas com a noção de que não existo sem o meu maior adversário.

Um dos méritos da série é a forma como nos apresenta os argumentos da oposição entre o negócio e a pureza do jogo. Percebe-se a luta interna de Fergus por “trair” os valores impostos, a indignação de outros face à ilegalidade do caso e a determinação com que as elites tentavam impedir que os operários chegassem para ficar. “Homens a jogar por dinheiro nunca se esforçarão tanto como homens a jogar por amor ao jogo”, diz um dos jogadores do Old Etonians. O que seria se sonhassem com sheiks e investidores sem ligações aos clubes.

Ainda há quem tente menorizar o impacto social do futebol, por desconhecimento ou má vontade, elevando-se numa suposta superioridade intelectual. No lado negro do negócio, também não falta quem se aproveite dele para enriquecer ou para ganhar visibilidade. Além de nós, que vibramos com golos e fintas mágicas. Numa altura em que não há bola a rolar, recomenda-se uma viagem até 1966, 1982, 2000 ou outro ano qualquer. Aí teremos sempre o jogo que queremos. Em 1879, começámos a compreendê-lo um pouco melhor.

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