The Invincibles: a obra-prima de Wenger e Henry

Tomás da Cunha
11 Médios
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6 min readMar 25, 2020

Terminar a Premier League de 2003/2004 sem derrotas não valeu ao Arsenal apenas mais um título. Com Arsène Wenger, os londrinos atingiram uma proeza histórica e indelével, que não viria a ser repetida por outro clube. Foram o melhor ataque (73 golos), a melhor defesa (26 golos sofridos) e tiveram em Thierry Henry o máximo goleador do campeonato (30 golos). Voltei ao passado para tentar perceber melhor aqueles The Invincibles, recuperando cinco jogos de diferentes contextos dessa temporada.

Manchester United 0–0 Arsenal — Jornada 6

Imagem: Footballia

Foi, porventura, o jogo do campeonato em que o Arsenal esteve mais perto de perder. Ruud van Nistelrooy falhou uma grande penalidade já em tempo de descontos e a superioridade (ligeira) do Man United ao longo da partida poderia justificar a vitória. Cristiano Ronaldo, ainda na fase da verticalidade e do drible, era a nova coqueluche dos red devils e criou problemas a Ashley Cole.

Em relação à equipa habitualmente titular, Wenger não tinha Sol Campbell (entrou Keown) e Robert Pirès, apostando num meio campo reforçado, com Ray Parlour a fechar o lado direito no 4–4–2. Era uma solução habitual nos encontros de maior exigência, devido à agressividade e disciplina que o médio inglês emprestava no momento defensivo. Como consequência, faltou alguma capacidade de saída rápida aos gunners, que apresentaram um rendimento atacante bastante escasso. Importa dizer ainda que, ao contrário do que se possa pensar, o plantel não dava muita margem para mudanças sem perda de qualidade e era frequente haver apenas uma ou duas substituições. No ataque, Wiltord fez a pior época em Londres e José Antonio Reyes só chegaria em Janeiro, levando Wenger a oferecer oportunidades ao limitado Jérémie Aliadière.

Leeds United 1–4 Arsenal — Jornada 11

Imagem: Footballia

A deslocação a Elland Road trouxe uma versão do Arsenal muito mais próxima do nível que demonstrou na temporada, construindo a goleada a partir dos dois principais pontos fortes da equipa no ataque: Thierry Henry a explorar a profundidade (timing de desmarcação e passada larga) e a facilidade para aproveitar as transições ofensivas, criando situações de igualdade ou de superioridade numérica. Com a capacidade de recuperação de bola de Gilberto Silva e Ray Parlour, o Arsenal encontrava espaços para o contra-ataque e chegava à baliza contrária em poucos segundos. Desta vez, Wenger contou com o quarteto fantástico na frente — enquanto Bergkamp baixava em apoio, Robert Pirès, Freddie Ljungberg e Thierry Henry aceleravam, preenchendo os três corredores e dando opções ao holandês. Nesse cenário, os gunners eram imparáveis. Aaron Lennon (com 16 anos), James Milner, Jermaine Pennant ou Alan Smith faziam parte daquele Leeds United, mas iriam chegar a outros palcos.

Arsenal 2–1 Manchester City — Jornada 23

Imagem: Footballia

Gilberto Silva não é, de todo, o jogador mais valorizado do Arsenal 03/04. No entanto, tinha um papel fundamental sem bola e dava liberdade a Patrick Vieira para se juntar aos quatro da frente. Facilitava a tarefa dos centrais e do parceiro de meio campo. Agora, com outra visão futebolística, reconheço-lhe muito mais mérito do que na altura. “The Invisible Wall”, alcunha que recebeu em Inglaterra, aplica-se na perfeição a um especialista defensivo como o brasileiro. Além da capacidade de pressão após a perda, dava enormes garantias a nível posicional, protegendo o espaço entre linhas e oferecendo coberturas. Na partida frente ao Manchester City, o Arsenal voltou a demonstrar a sintonia na esquerda — lado forte, de onde saía a maior parte dos golos marcados. Ashley Cole estava em ascensão e integrava-se no ataque com critério, identificando espaços para desequilibrar e associando-se com facilidade. As trocas posicionais entre Robert Pirès e Thierry Henry criavam dúvidas no adversário e potenciavam dois argumentos: os movimentos de ruptura do extremo em zonas interiores (marcou 19 golos na temporada, máximo de carreira) e a possibilidade de o craque da equipa aparecer na zona preferida. Quando acelerava em direcção à baliza ou encontrava espaço para o remate em arco era praticamente imparável.

Arsenal 1–2 Chelsea — Quartos-de-final da Liga dos Campeões

Imagem: Footballia

O velhinho Highbury alimentava a esperança de que os gunners pudessem levantar a orelhuda pela primeira vez, mas o dérbi europeu caiu para os blues. Desta vez, com Gilberto Silva ausente, percebeu-se a influência do brasileiro na organização colectiva de outra forma. A dupla composta por Edu (suplente mais utilizado na temporada, juntamente com Ray Parlour) e Patrick Vieira não conseguiu controlar o espaço entre linhas com eficácia, expondo Kolo Touré e Sol Campbell. Reyes jogou no papel de Bergkamp, tentando receber em zona de criação e servir Henry, sendo que o francês não esteve ao nível habitual. Para piorar a situação, Jens Lehmann — que raramente comprometeu — entregou o empate ao conjunto orientado por Claudio Ranieri. O Chelsea pré-Mourinho terminou em 2.º lugar na Premier League e vingou-se na Europa, alcançando as meias-finais. Já perto do fim, com o Arsenal encostado às cordas, Wayne Bridge progrediu para o corredor central, utilizou o apoio de Gudjohnsen e carimbou o apuramento.

Arsenal 4–2 Liverpool — Jornada 32

Imagem: Footballia

Depois da eliminação na Liga dos Campeões, o conjunto de Wenger tinha um dos últimos desafios complicados no campeonato. Em caso de vitória, ficaria muito perto do título, mas entrou logo a perder e saiu para o intervalo em desvantagem (1–2), com Sol Campbell a sofrer com os ataques à profundidade de Michael Owen. Haveria resposta de campeão após o intervalo. Os franceses da frente, que já tinham criado o primeiro golo do Arsenal, iriam levar Highbury à loucura com uma segunda parte de sonho, consagrando-se como duas das principais figuras da temporada. Thierry Henry assinou um hat-trick, virando o marcador com um golo de predestinado e explorando as costas da defesa do Liverpool. Pirès juntou mais um golo característico à conta pessoal, aparecendo na área para receber o passe de Ljungberg (extremo a servir de apoio entre linhas). Foi, sobretudo, a demonstração de que os gunners se sentiam invencíveis naquela Premier League.

Num plantel que não tinha a profundidade necessária, Arsène Wenger encontrou um 11 sem fraquezas significativas e com diversas sociedades de sucesso. Kolo Touré e Sol Campbell defendiam a área de forma contundente, mas também demonstravam eficácia na antecipação (encurtando espaços entre linhas). Gilberto Silva e Patrick Vieira complementavam-se, sendo que o francês assumia maiores responsabilidades ofensivas (possante em condução e exímio na utilização do corpo). Referi anteriormente a dinâmica na esquerda entre Ashley Cole, Robert Pirès e Thierry Henry, com trocas posicionais entre os dois últimos. Bergkamp funcionava como Firmino, fazendo uma comparação com a actualidade. O holandês, já com 35 anos, marcou apenas 5 golos, criando para outros finalizarem. Todos estavam cientes do papel que desempenhavam dentro do colectivo.

Pelas características dos jogadores, este Arsenal sentia-se muito mais confortável com espaços para explorar, apanhando o adversário desequilibrado. Pirès e Ljungberg defendiam como se fossem médios e atacavam como extremos, cumprindo a dupla exigência de Wenger. Com bola, notava-se a preocupação de Gilberto Silva e Patrick Vieira não estarem alinhados e a divisão de espaços entre laterais e extremos nos flancos, existindo interpretação constante. Dentro da mobilidade no último terço, Bergkamp surgia como referência em apoio e Henry tinha liberdade para deambular entre o centro e a esquerda.

Apesar dos méritos colectivos, The Invincibles não se entendem sem a devida valorização da estrela maior. Jogou num campeonato à parte, só dele. Não havia forma de o defender. A superioridade de Thierry Henry assustava qualquer rival. Nas transições, a atacar a profundidade e no 1x1, demonstrava características físicas fora do comum. Em zonas de remate, tinha instinto recebia de forma orientada e utilizava os dois pés. Com o adversário organizado, levava a bola coladinha e eliminava adversários através de fintas curtas. Se caía na esquerda, adivinhávamos que haveria perigo. Tornou-se uma lenda de Highbury.

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