Fake news é o novo arsenal de guerra

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8 min readJun 4, 2018

Notícias falsas foram capazes de decidir eleições nos EUA, além de provocar caos recente na greve dos caminhoneiros e ameaçar as eleições no Brasil. Todos nós precisamos saber como lidar com esse fenômeno.

As fake news evoluíram de corriqueiras mensagens compartilhadas nas redes sociais e aplicativos de mensagem instantânea, para ameaças eleitorais tão rapidamente que engenheiros da computação ainda estão tentando entender a dimensão do problema. O fenômeno ganhou proporções monumentais após o escândalo da empresa britânica Cambridge Analytica, que supostamente adquiriu indevidamente os dados pessoais de 50 milhões de usuários do Facebook. Com o arsenal nuclear em mãos, sites foram capazes de pulverizar notícias falsas, de maneira bastante direcionada e personalizada, impactando as eleições americanas. E agora, a cinco meses das eleições brasileiras, as notícias falsas provocaram um recente caos durante a greve dos caminhoneiros e ameaçam influenciar a nossa disputa presidencial. Em uma corrida contra o tempo, a Europa aplicou a lei de proteção de dados, ao mesmo tempo que o Brasil tenta emplacar um projeto semelhante. A expectativa é que o texto seja aprovado nesta semana. O Facebook entrou em ação: aplicará a mesma lei europeia a todos os usuários do mundo e passou a oferecer um pacote de serviços para atenuar o problema.

O poderio “militar” das fake news não é uma novidade e muito mesmo começou a ser “aproveitado” há pouco tempo. Para entender como todo esse cenário foi desenhado, é útil contemplar um fato óbvio, embora não muito apreciado: espalhar notícias falsas está no cerne do ser humano. A prática já acontecia muito antes do surgimento da própria mídia e faz quase parte do desenvolvimento social do homem. A nossa linguagem, por exemplo, só conseguiu evoluir com ajuda da “fofoca”, como narrou o professor Yuval Noah Harari, da Universidade Hebraica de Jerusalém, em seu livro Sapiens — uma breve história da humanidade.

Outros Indícios mostram que os gregos antigos tinham o hábito de inventar notícias sobre guerras e fenômenos naturais, capazes de influenciar cidades e até arruinar negócios. No capítulo o “Traficante de Boatos” (“The Rumour-Monger” ou “Newsmaking”, dependendo da edição do livro) da obra “Os Personagens”, o filósofo grego Teofrasto (371 a.C./287 a.C) descreveu como acontecia a articulação da notícia naquela época. Um sujeito recebia informações “quentes”, oriundas de fontes nada confiáveis e, em seguida, espalhava os fatos, independente da autenticidade deles. No final do dia, se a história era real ou não, já não importava mais, uma vez que a cidade já havia sido impactada pela notícia. Obviamente, dezenas de séculos depois, este hábito só se transferiu para outras plataformas. Porém, diferentemente daquele período, o impacto agora é global e a perspectiva não é nada positiva.

As notícias falsas se tornaram uma estratégia de guerra e desestabilização social. No ano passado, foram encontradas milhares de contas do Twitter e Facebook da Rússia, estas chamadas de “bots” — perfis criados em massa para bombardear e instigar o público com mensagens políticas extremistas, violentas, preconceituosas e, muitas vezes, falsas. Diversos sites pró-Trump, que disseminavam notícias falsas, foram descobertos, curiosamente, na nação balcânica da Macedônia — nome homônimo de uma das cidades gregas mais famosas da história antiga.

A pequena Veles, de apenas 55 mil habitantes, atraiu atenção da mídia, após as eleições americanas, por abrigar um complexo de fake news que enriqueceu muitos adolescentes do país. Essa “corrida do ouro digital”, a qual colocou holofotes sobre diversos países da mesma região, acionou o sinal de alerta sobre a “matéria-prima” utilizada para impulsionar todo esse esquema: os dados pessoais de milhões de pessoas.

Tudo começa com os seus dados

Quase todos os aspectos da vida diária são realizados em smartphones, laptops, tablets e afins. Com isso, quaisquer dados que você produz no seu dia a dia — do GPS à uma simples “curtida” em uma foto nas redes sociais — contribuem para o desenvolvimento do seu perfil pessoal, tanto no Facebook, como no Google, por exemplo. Todas as suas escolhas, conscientes e inconscientes, vão determinar a sua idade, sexo, histórico de emprego, orientação sexual e opiniões políticas, religiosas, sem contar aspectos éticos e morais. Empresas como o Facebook e o Google sabem muito sobre os seus usuários, e continuam aprendendo.

À primeira vista razão é simples: segmentar o mercado e personalizar a publicidade sugerida. No caso do escândalo Cambridge Analytica, com essas informações, a empresa manipulava as emoções dos usuários desavisados ​​com propagandas políticas tendenciosas. Nas redes sociais, esse fato se potencializou ao se chocar com as bolhas ideológicas, construídas por algoritmos que restringem o contato de seus usuários com opiniões políticas totalmente divergentes. Quando as notícias falsas chegam, o estrago já está feito.

Por conta disso, a Europa saiu na frente em relação ao assunto, e em maio (25) colocou em vigor o novo Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados da União Europeia. Agora é obrigatória a autorização expressa dos cidadãos para que qualquer empresa ou organização possa usar e-mail, telefone, endereço ou mesmo outras informações pessoais. No Brasil, o PLS 330/13 — projeto de “Lei de Proteção de Dados” — tramita na Câmara dos Deputados, onde teve seu pedido de urgência aprovado no Senado, e pode ser votado a qualquer momento.

Notícias falsas evoluíram para “deepfakes”

Com o avanço da tecnologia, as notícias falsas vêm evoluindo a ponto de influenciar também a imagem e o som. Chamadas “deepfakes”, a técnica consiste em “costurar” o rosto de uma pessoa no corpo de outra, o que gerou uma série de vídeos pornográficos falsificados de celebridades. Outro método é usar a imagem de um político dizendo ou fazendo algo ultrajante, a exemplo do ex-presidente americano Barack Obama. Vídeo que circula na internet mostra como é possível manipular digitalmente a boca de uma pessoa, alterando o seu discurso. O mesmo aconteceu com o presidente da Rússia, Vladimir Putin.

O problema, claro, se estende muito além da troca de rosto ou articulação da boca. O Google até desenvolveu uma ferramenta chamada Duplex, uma IA que faz chamadas telefônicas em nome de um usuário — uma possível brecha para falsificadores de voz entrarem em ação. Os especialistas dizem que em pouco tempo, pode ser muito difícil saber se uma foto, um vídeo ou áudio sofreram manipulação ou não.

O impacto das fake news na sociedade

Se a tecnologia ainda não é capaz de detectar falsificação com 100% de precisão, o Estado decidiu criar leis como forma de repressão dos criminosos. A Malásia foi o primeiro país a tornar punível a divulgação deliberada de informações falsas: são até seis anos de prisão e multa de 120 mil dólares. Salah Salem Saleh Sulaiman (46), primeiro preso após a instauração da nova medida, foi acusado de divulgar um vídeo no Youtube no qual criticava os serviços de emergência de Kuala Lumpur de demorar para prestar socorro. Mais estapafúrdia, impossível. Fato é que o assunto provocou indignação nos grupos de direitos humanos, os quais acreditam que o objetivo da nova lei é reprimir não só mentiras perigosas, mas também a voz da população, comentários legítimos e jornalismo investigativo. A Malásia não é o único país asiático a procurar maneiras de regulamentar as mídias sociais. Camboja, Vietnã, Tailândia, Cingapura e Sri Lanka querem entrar no grupo.

Especialistas chamam este episódio de “a tragédia dos comuns”, quando o comportamento coletivo irracional prejudica a todos. provocando o esgotando dos recursos.

Além das implicações que as fake news têm gerado na democracia e liberdade de expressão, o impacto também é sentindo na economia e na intensificação de crises sociais. Informações mentirosas causaram consequências inesperadas e até perigosas, como aconteceu recentemente no Brasil, na greve dos caminhoneiros. Gravações de áudio, assinada por um fictício “Sindicato dos Caminhoneiros do Brasil”, circularam em grupos de WhatsApp dizendo a população para se precaver de uma guerra. “Avisem suas famílias, vão no mercado, comprem comida, abasteça seus carros”.

A mensagem criou pânico, provocando uma corrida aos postos de gasolina e supermercados. Nessas circunstâncias, o resultado dessa mensagem teve um impacto real na economia, em menos de três dias não havia mais gasolina e alguns tipos de alimentos não eram mais encontrados. Especialistas chamam este episódio de “a tragédia dos comuns”, quando o comportamento coletivo irracional prejudica a todos. provocando o esgotando dos recursos.

Combatendo as fake news

Os pesquisadores já estão se preparando para usar a inteligência artificial para detectar adulterações criadas pela própria IA. Porém, detectar uma falsificação digital não é uma tarefa simples — uma vez que a evolução do aprendizado das máquinas vem acontecendo de forma acelerada e as falsificações vão se tornando cada vez mais sofisticadas. Por conta desse cenário, existem discussões sobre a criação de um “protocolo para uma internet segura” e “assinaturas digitais”, a exemplo de técnicas de detecção de mudanças no pulso humano, captadas em vídeos. (https://people.csail.mit.edu/mrub/vidmag/)

O próprio Facebook, o maior alvo da discussão, usa a IA para impedir propaganda extremista, contas falsas e discursos de ódio, mas ainda não é sofisticada o suficiente para lidar com notícias falsas. Segundo uma entrevista recente de Yann LeCun, cientista-chefe da rede social e pioneiro no desenvolvimento do aprendizado profundo das máquinas, em entrevista ao site Bloomberg, apesar do progresso da visão computacional e processamento de linguagem natural, os sistemas ainda não são capazes de entender “contextos”, como ironia ou humor.

Contudo, a rede social vem trabalhando para que notícias falsas não sejam disseminadas com tanta facilidade. Este mês, Mark Zuckerberg anunciou uma estratégia de três frentes: remover contas e conteúdo que violam suas políticas; reduzir distribuição de conteúdo não autêntico e fornecer às pessoas mais contexto nas postagens. Uma vitória para a mídia tradicional: as agências de checagem “Lupa” e “Aos Fatos”, ambas ligadas à International Fact-Checking Network (IFCN), se aliaram ao Facebook.

Entretanto, a chave que vai garantir que a população comece a se informar de fato por meio de fontes confiáveis, começa na educação. No mundo, milhares de jornalistas estão trabalhando nesse novo segmento, que pretende ajudar as pessoas a se orientar com mais segurança. Recentemente, o instituto Poynter (EUA) desenvolveu uma cartilha educativa de como identificar sites e notícias falsas. Países como a Itália propôs um projeto de alfabetização digital para 8.000 escolas do país. Antes que as fake news comece a se embrenhar em mais setores — de empresas de grande e pequeno porte à vida privada -, é preciso que toda a sociedade tome consciência da dimensão e o risco dessa nova realidade. Aprender a lidar com essa dinâmica é o primeiro passo.

Texto por: Mayhara Nogueira

A Deep Tech Stories foi criada para que possamos conversar sobre a essência da tecnologia como se deve: com seriedade, inspiração e profundidade. Acreditamos que o futuro precisa se alimentar de boas histórias para fazer sentido. Acompanhe a publicação e descubra o jeito 1STi de enxergar a tecnologia.

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