Terceiro Mundo, Fábrica de Marighella

Thomas Loran
Editorial 20 21
Published in
4 min readJun 14, 2021

Mil Faces de um Homem Leal” é uma música do Racionais, acompanhada de um videoclipe, que recorda a vida e luta do guerrilheiro comunista Carlos Marighella aproximando a figura quase que martirizada do militante a de pessoas comuns oriundas de periferias ao longo de todo o Brasil. No clipe, Marighella é interpretado por Mano Brow e, muitas vezes, a partir da edição frenética que mescla passado e presente, se mistura a imagem dois homens. Ainda em 2012, ano de lançamento do clipe, houve muitas críticas por parte de determinadas parcelas da população a respeito da própria personalidade e as inúmeras questões que o cerca. Além disso, outra questão que veio à tona na época e atualmente de maneira mais latente a partir do filme dirigido por Wagner Moura e estrelado por Seu Jorge, é a cor do guerrilheiro.

“Mártir, o mito ou Maldito sonhador
Bandido da minha cor”

O filme de Wagner Moura levanta questões que dizem respeito a vida do militante comunista em pleno contexto de Ditadura Militar e vem sido constantemente atacado por grupos da extrema-direita uma vez que trata da história através da perspectiva do oprimido, deflagrando os horrores da Ditadura cívico-militar brasileira que cerceou direitos sociais, censurou mídias e assassinou todo e qualquer homem ou mulher que era contra os seus interesses.

Como dito anteriormente, um ponto importante do filme vem sendo altamente discutido: O fato de Marighella ser representado por um ator negro, — e de pele retinta- o Seu Jorge. Há no próprio filme uma cena em que o diretor aborda entrelinhas que toda essa polêmica a respeito da identidade racial de Marighella já era algo mais do que previsto e certo de acontecer. Em um diálogo desconexo com a narrativa, vemos o personagem de Seu Jorge escutando o Padre contar um pouco sobre a história de Jesus e do porquê o fato da fuga de sua família para o Egito a fim de o esconder era um dos motivos mais claros de que Jesus era negro, já que o Egito é um país do continente Africano e que apesar de todo o embranquecimento cultural de figuras como Cleópatra, os egípcios também eram negros. Logo, não fazia sentido esconder uma criança branca de olhos azuis em meio a toda uma população negra. Essa discussão já é algo recorrente e discutido entre religiosos, historiadores e militantes, mas a sua utilização dentro da obra de Wagner Moura passa a ser um exercício de metalinguagem. É para os olhares atentos, uma forma de falar que da mesma forma que Jesus era negro, Marighella também era. Mas, de forma alguma, existe uma busca de equiparação das personalidades e atribuição de um alto grau de messianismo no personagem principal, já que isso vai de contramão as próprias teorias que ele, em vida, defendeu: o Comunismo, uma luta do povo para o povo.

Entretanto, a forma que a questão é abordada na narrativa, gera uma distância quase que inevitável, entre o clipe “Mil Faces de Um Homem Leal” e o filme de Wagner Moura. O clipe e a letra buscam uma diluição do aspecto mítico, atribuindo os valores e luta do Marighella à população, principalmente à população negra e periférica. Enquanto o filme, busca uma centralidade da luta na figura do guerrilheiro mesmo abordando, por meio de uma montagem paralela, o conjunto de fatos e acontecimentos que levaram ao seu assassinato — o ponto de maior dramaticidade do filme: planos suspensos por um clima de tensão intenso, sem música e uma iluminação repleta de nuance nas sombras.

Outro exercício de metalinguagem que não é próprio do filme, mas sim da própria história, é a prisão de Marighella em 1964 pelo Departamento de Ordem Política Social, o DOPS, em um cinema. Não apenas a prisão, mas também o tiro que recebeu no peito, mesmo sem haver algum mandato e nem resistência à prisão para tal acontecido. Tendo em mente, que o filme era para ser distribuído e assistido em salas de cinema, essa cena ganharia um peso ainda maior. O cinema muitas vezes, foi um espaço de extremo conforto e esquecimento do mundo externo, pois quando as luzes se apagam e a tela passa a reproduzir imagens de uma realidade da qual não conhecemos, passamos não apenas a conhecer, mas fazer parte dela, como apenas observadores ou como ativos participantes, esquecendo por horas o mundo do qual realmente fazemos parte. Colocar uma cena de tal brutalidade ocorrida dentro de um cinema e estar num cinema observando é ter aquele princípio de incômodo, aquele frio na barriga e questionamentos que se tenta escapar, mas não saem da cabeça: “imagina se isso acontecesse comigo aqui e agora…”

O resgate histórico realizado pelo filme de Wagner Moura e pelo videoclipe do grupo dos Racionais MC’s joga luz em um dos mais tristes períodos da história do Brasil e que atualmente passa por um forte processo de eufemização, ou seja, existe uma forte busca por determinadas parcelas da população em fazer com que toda a opressão e morte que marcam a Ditadura Militar, seja minimizada e até mesmo, esquecida. Esse papel é ainda mais significativo dentro do videoclipe, pois o Racionais é um dos mais importantes grupos musicais do Rap Brasileiro e da música brasileira. O grupo que conta com mais de 30 anos de história possui uma vasta influência dentro das periferias de todo o Brasil como símbolo de luta e resistência cultural. Para muitos, foi o primeiro contato com temáticas como o racismo, desigualdade social e agora, por meio do videoclipe, a história de Marighella e de todos que deram seu sangue e vida pela garantia dos direitos sociais — pelos quais essas minorias sociais lutam até os dias de hoje.

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Thomas Loran
Editorial 20 21

Estudante de Cinema e Audiovisual — UFF, Diretor de Fotografia, Editor de Vídeos e pesquisador de Cinema Negro Brasileiro