50 Anos de Bitches Brew

e porque é o álbum mais ousado de Miles Davis

spicy boogie, o mr. lova lova
300 Noise
4 min readMar 31, 2020

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Falar sobre Miles Davis não é uma tarefa fácil. O cara tem uma extensa discografia, gravou coisa com muita gente, sem falar da importância e legado não só para o jazz, mas para a música em geral. De fato, medir palavras para Miles Davis é um desafio. No Ideia Divaga dessa semana vamos falar de um ponto chave na sua carreira, completando nessa semana, dia 20 de março, 50 anos de existência, a obra prima: Bitches Brew.

Assumir esse play como o ápice de sua carreira, também é um pouco polêmico, tendo em vista seus 51 álbuns de estúdio. Claro, Sketches of Pain, e Kind of Blue também são geniais e não ficam pra trás em relação ao Bitches Brew, mas aqui nós assumimos o risco e explicamos por que é o apogeu de Miles Davis.

O desejo de extrapolar cada vez mais fronteiras para Davis era nítido fazia alguns anos, no álbum anterior, In Silent Way, fica bem claro a nova guinada no som, mas provavelmente ninguém sabia muito bem o que viria seis meses depois durante as gravações de Bitches Brew.

Para compor essa nova aventura, foi reunido o dream team, composto por Wayne Shorter, Chick Corea, John McLaughlin, Dave Holland, Billy Cobham, o brasileiro Airto Moreira e mais uma serie de figuras que se tornariam emblemáticas no jazz. A produção ficaria a cargo do já parceiro de data, Teo Macero.

A sociedade norte americana passava por um período de agitações sociais, guerra do Vietnã, luta pelos direitos civis dos negros, a contra cultura atraindo cada vez mais jovens, até a realização do Woodstock. Tudo isso afetou Davis. Sua música foi apenas um reflexo do seu próprio tempo. A mistura entre funk, R&B, rock psicodélico, ritmos tradicionais africanos e jazz, regrado a muita experimentação e improvisação levaram Miles e seu time a caminhos que, até então haviam sido pouco explorados, pavimentando uma década de novos gêneros musicais e bandas.

Partitura da música “Bitches Brew”

Segundo o guitarrista John McLaughlin, “Era claro que ele não sabia muito bem o que queria, mas ele sabia o que não queria.”. Dando apenas algumas instruções de acordes e definindo um tempo para os músicos, quase tudo surgiu em meio a improvisos. Foi preciso sair do senso musical para ir além e buscar outras formas de expressão. Talvez, além do que se achava possível. “Toque o espaço” teria tido Davis em determinado momento para McLaughlin. Genial. Era o som do futuro. Ainda é, na verdade, mesmo 50 anos depois.

O resultado era claramente abstrato. As diversas gravações fizeram com que o álbum se tornasse uma grande colagem. Como alguns takes eram curtos e outros muito grandes, o produtor, Teo Macero, junto com Davis utilizaram o estúdio também como uma espécie de instrumento, rearranjando, editando e repetindo partes, colocando efeitos, loops, delays, reverbs e echos. Essa montagem trouxe um novo sentido artístico para as composições. Cada pequena criação, colocada de uma forma diferente, com um propósito diferente.

Miles Davis e Teo Macero

Assim como o tempo em que foi criado, Bitches Brew é uma jornada onde tudo é caótico, sombrio e violento, mas também atmosférico, denso e confuso. É muito fácil se perder em sua audição caso você não esteja atento. Muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo, sons se repetindo, vindo e voltando, timbres e notas que soam esquisitas, ritmos hipnotizantes, compassos quebrados, texturas complexas, mix de diversas harmonias e instrumentos sobrepostos (há dois baixos, três baterias e três pianos elétricos tocando ao mesmo tempo). Poderia tentar descrever o som em mil palavras, mas único jeito é você ouvir. Cair de cabeça dentro dessa experiência única, que a cada ouvida se descobre algo novo. Uma espécie de pintura, onde a tantos detalhes, cores, pinceladas, expressões e emoções, que não é possível entender e absorver tudo de uma vez. É preciso tempo e paciência.

Arte completa de Bitches Brew

A incrível capa feita pelo alemão, Mati Klarwein reflete muito o som do disco, uma mistura entre surrealismo, elementos afro-futuristas e psicodélicos. O lado esquerdo da arte é sombrio e místico, enquanto o lado direito nós traz o dia, o vento e mar, como se o disco alternasse entre momentos em que somos levados por essa maré e pela brisa, num vai e vem, quase sem fim, já em outros instantes somos abraçados pelo mistério e pelo desconhecido. As interpretações são muitas, o que demonstra ainda mais a profundidade dessa obra.

O sucesso foi grande, sendo o álbum que vendeu mais rápido de Miles Davis. Seu time também ganhou notoriedade após o lançamento, cada um montando novas bandas e seguindo trajetórias de sucesso, John McLaughlin montaria o Mahavishnu Orchestra, Wayne Shorter e Joe Zawinul formariam o Weather Report e Chick Correa e Lenny White estabeleceriam o Return to Forever.

Toda uma nova forma de se pensar o jazz surgiu, do diálogo com o rock, nasceu um novo gênero, o Fusion, mas isso é pequeno comparado com o impacto feito na maneira de enxergar composições e produção. Levas e mais levas de bandas de prog rock, post-rock, mathcore, rock experimental e tantos outros gêneros, devem uma parte de sua origem para esse play.

Feliz aniversário, Bitches Brew e obrigado Miles Davis.

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