Imagem do poder

A personificação do império romano nos gritos de Lingua Ignota

spicy boogie, o mr. lova lova
300 Noise
5 min readJul 28, 2020

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Busto de Calígula

Trigger Warning: o texto a seguir retrata um álbum feito a partir da experiência de um relacionamento abusivo.

A imagem de Calígula foi construída como uma das figuras histórias mais cruéis e depravadas do Império Romano, período marcado pelas constantes tentativas de golpes e assassinatos, devido as grandes disputas de poder entre a aristocracia e senado romano com os imperadores.

As histórias que o envolvem vão além do famoso episódio do cavalo Incitatus nomeado como magistrado superior. O imperador tinha abertamente relações incestuosas com suas irmãs; realizava grandiosas orgias; construiu estátuas suas de ouro em tamanho real; humilhava constantemente membros da aristocracia; assistia e se divertia com execuções e torturas. Enfim, a lista de suas “loucuras” vai longe…

No entanto, vale lembrar que muitos desses relatos foram feitos por representantes e pessoas ligadas ao senado romano, ou seja, opositores políticos. Para esses sujeitos, era uma estratégia política referencia-lo desta maneira. Para a historiografia é bem claro que Calígula está longe de ser um “completo doidão”, como retratado em filmes. Embora existam bastantes confusões e contradições em sua história, sabemos que o imperador tinha um forte senso político. Ele possuía consciência de sua popularidade e de suas ações, como por exemplo, quando decidiu reduzir as armaduras dos gladiadores. Diferente da narrativa comum, Calígula não teria feito isso por seu “amor em carnificina”, mas sim pois, entendia que seria um ato bem aceito pela plebe, e assim o ajudaria manter sua posição de líder carismático.

Calígula no filme de 1979.

O motivo por mantermos essa visão fantasiosa de Calígula são diversos, falta de divulgação acadêmica, a demora na atualização dos livros didáticos, entre outras, mas existe algo que talvez vá além dessas questões práticas e materiais.

Constantemente o ser humano procura entender e buscar inspiração nas ações e sensações que levam a experiência de estar vivo ser a mais horrível possível: a violência, a tortura, o estupro, os abusos psicológicos e, por fim, a morte. Penso que, por isso a figura de Calígula se torna tão apelativa para nós, um exemplo desde tempos antigos, homens e mulheres estão fadados a serem seduzidos pelo poder, perversidade, sadismo ou qualquer outro adjetivo que tenha uma conotação moralmente negativa.

Capa do álbum Caligula, de 2019.

Aqui o álbum “Caligula” de Lingua Ignota revela como até hoje as imagens e os temas relacionados ao imperador romano são interligados constantemente com a crueldade, abusos psicológicos e sexuais.

Kristin Hayter, conhecida pelo seu nome artístico, Lingua Ignota, foi uma vítima de abuso doméstico e sua arte é um reflexo direto das suas angústias. O início da sua relação com música extrema e questões de violência sexual vem de sua tese de graduação chamada “Burn Everthing, Trust No One, Kill Yourserlf”, na qual Hayter analisa diversas letras de pornogrind (muitas delas com conteúdo extremamente misógino) e as relaciona com sua própria vivência como mulher. Assim, aos poucos, ela foi se adentrando ao cenário do noise e da música industrial onde acabou se envolvendo com um artista da “cena”. Entretanto esse relacionamento se tornou abusivo, culminando em violências físicas e psicológicos. Como um meio de expurgar os traumas, buscou transformar o sofrimento em arte, dar voz as suas feridas para que outras mulheres pudessem ouvir, até mesmo alerta-las e encoraja-las a se abrirem perante um assunto tão delicado.

Kristin Hayter

Contudo, as letras não se limitam a sua vivência, apesar de serem baseadas nisso, ela mesma admiti usar muitas alegorias, inclusive bíblicas para tornar seu conteúdo mais universal. Na música “IF THE POISON WONT TAKE YOU MY DOG WILL”, é criado uma espécie de relação com a considerada serial killer, Aileen Wuornos, uma prostituta estadunidense que, mesmo tendo agido em legitima defesa ao se defender de tentativas de estupro, foi acusada de assassinato, recebendo sentença de morte e sendo executada, via injeção letal, em outubro de 2002.

Kyrie eleison
Kyrie eleison

Aileen
I’ll only say this once
Life is cruel, and time heals nothing
And everyone you love will leave you
But not me

Neste som, Kristin evoca uma oração comum na liturgia cristã, “Kyrie Eleison”, que em grego significa, “o senhor tenha piedade”. Indicando uma conexão entre a compositora e Aileen Wuornos, provavelmente por entender a situação pela qual ela passou.

Taking it outside of my experiences and not making it about what happened to me, I’m giving it gravitas by giving it context that’s outside of me. Em entrevista para revista Kerrang!

A transposição de todos esses sentimentos não se restringe apenas as letras. Musicalmente, Caligula é um turbilhão de expressões sonoras. Ao longo das composições ouvimos harmonias neoclássicas e barrocas, pianos, cellos e cantos angelicais, enquanto em certos momentos somos literalmente esmurrados por batidas industriais e engolidos por barulhos ambientes e gritos agonizantes, transmitindo exatamente as sensações de ódio, desespero e violência.

Lingua Ignota ao vivo

É interessante pensar nesse álbum como uma importante reflexão para o metal extremo. Um gênero composto majoritariamente por homens brancos, no qual a presença das mulheres sempre é muito sexualizada, “tal banda com a vocalista x é muita boa, ela é linda”, ou não são reconhecidas como mulheres, isso quando não sofrem dentro das próprias bandas.

O título do álbum reflete justamente isso, Calígula é interpretado como uma representação da sociedade e, por consequência, as relações entre homens e mulheres. Enquanto nome da obra, o primeiro é o provedor do caos e das perturbações, já o segundo, as músicas, resultado direto das ações e traumas causados pelos homens.

I was looking at abusive power, madness, depravity, narcissism — all of the things I see in our world politically and in our communities… looking at myself and my own kind of madness as a result of trauma. I felt that Caligula exemplified the society that we live in on the edge of ruin, the edge of collapse. — Kristin quando perguntada sobre o título do álbum.

Analisar tudo que Caligula pode oferecer é esvaziar todas suas expressões como uma obra de arte, que trata de assuntos delicados e que promove reflexões importantíssimas não só dentro das próprias “bolhas musicais”. O exemplo está para ficar e inspirar novas artistas. Como ela mesma disse, suas músicas não são só catárticas, mas também sobre transformação e retribuição.

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