A pluralidade da música jamaicana

Para além de visões simplistas, o Reggae é um gênero que dialoga com diversas esferas sociais, políticas e religiosas

spicy boogie, o mr. lova lova
300 Noise
5 min readJun 17, 2020

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Para entender a relação entre o Reggae e o Pan-africanismo, antes precisamos fazer uma breve introdução. Não é uma tarefa fácil resumir correntes ideológicas e políticas, pois fazemos escolhas sobre quais pontos e ideias gostaríamos de destacar e quais consideramos ser as mais importantes. Portanto, tenha em mente que este texto não pretende, de forma alguma, explicar o Pan-africanismo em sua totalidade, apenas contextualizar o leitor para um melhor entendimento.

Bandeira Pan-africana. O vermelho representa o sangue da união e o derramado pela escravidão. O preto, o povo negro e o verde, as riquezas naturais da África.

A começar pela etimologia da palavra, que vem do grego, pan significa “toda” e africanismo refere-se aos elementos da África. Desta maneira, o Pan-africanismo é uma ideologia, um movimento político filosófico e social que promove a união, assim como a defesa dos direitos do povo africano e seus descendentes, da unidade do continente africano no âmbito de um único estado soberano.

A necessidade de unificar as nações africanas sob seus conjuntos culturais ou “naturais” visa contrapor o expansionismo imperialista no continente. Esta é a principal discussão acerca do Pan-africanismo.

No entanto, essa ideologia não se restringe apenas ao continente, ela engloba todos os africanos e seus descendentes que estão em diáspora. Ela também unifica, sob uma bandeira, a luta contra a divisão do continente e a segregação de seus povos, impostas pelas potências europeias, EUA e o neocolonialismo; todo o tráfico de negros e toda a humilhação e exploração dos povos, assim como as mazelas causadas pela invasão, dominação e aculturação dessas nações. Deste modo, o movimento se consolida como uma corrente de sentimento de solidariedade entre as raízes africanas e sua dispersão.

Apesar de ser diretamente ligado à unidade nacional do continente africano, suas ideias são mais defendidas e discutidas fora dele. Alguns de seus principais teóricos estão nas Américas. Assim, a principal crítica ao movimento é que ele não pode representar uma totalidade dos anseios deste povo, pois ainda se trata de um olhar estrangeiro sobre as especificidades africanas, mesmo que esses teóricos sejam, inegavelmente, dessas mesmas raízes.

Marcus Garvey

O jamaicano, Marcus Garvey é um desses teóricos. Seus discursos foram de suma importância para que outras formas de resistências pudessem surgir em todos os ramos sociais, inclusive religiosos.

Suas ideias encontraram espaço dentro da sociedade jamaicana. A união dos povos de ascendência africana, combinou-se a uma reinterpretação livre de seus discursos somado aos ensinamentos bíblicos, especialmente do Velho Testamento, já bastante difundidos no imaginário jamaicano, culminando no surgimento do movimento Rastafári.

Mas o que a música jamaicana tem a ver com isso?

O The Wailers foi um dos responsáveis pela projeção internacional do Reggae. Grandes nomes do estilo fizeram parte da banda, como Bob Marley, Peter Tosh e Bunny Wailer, todos com carreiras de sucesso.

O Reggae surge como uma “continuação” natural de outro gênero musical jamaicano: o Rocksteady. Existem algumas diferenças quanto aos aspectos de cada estilo, entretanto, o que mais se destaca são as letras, mais focadas em questões políticas e religiosas, devido à crescente popularidade do movimento Rastafári.

O som mais lento, com estruturas rítmicas mais cadenciadas e hipnóticas. A presença de órgãos e teclados era maior, as letras falavam sobre a busca de direitos e exigiam a justiça social. Eram amparados pela cultura Rastafári, de orgulho negro e raízes africanas, de modo que evocavam os espíritos dos seus antepassados escravos. A canção de Burning Spear, “Slavery Days”, do álbum “Marcus Garvey” de 1975, ilustra bem esse reflexo na música:

Do you remember the days of slavery?
And how they beat us
And how they worked us so hard
And they used us
Til they refuse us

Música, política e religião se tornam uma só. As ideias pan-africanistas ficam latentes no “Reggae Roots”, e a figura de Marcus Garvey aparece no imaginário dessa população, refletido pela cultura Rastafári. Vale ressaltar o álbum “Marcus Garvey” de Burning Spear, como um condensador de todas essas ideias.

Garvey’s Ghost”, versão dub do álbum “Marcus Garvey”, de 1979.

Isso revela a complexidade do ambiente jamaicano. Fruto de diversas temporalidades e modos de se relacionar com cada elemento, algo que retoma diretamente a realidade plurirreligiosa e cultural do continente africano.

A cultura Rastafári começou a penetrar no imaginário popular e cultural da população, principalmente depois do êxodo rural e a chegada da filosofia Rastafári nas cidades, visto que a maioria dos adeptos ainda se encontravam no campo, e após a visita de Haile Selassie, imperador da Etiópia, divinizado pelos rastafáris, ao país em 1966. Os lugares que tiveram maior adesão aos seus preceitos foram as regiões mais periféricas. Consequentemente, muitos músicos vindo desses lugares acabaram por se tornar seguidores do movimento. Um processo que foi ganhando cada vez mais visibilidade conforme as ideias eram sendo reproduzidas nas músicas e de boca em boca pelas pessoas. A eternizada faixa “Rastaman” de Bunny Wailer é um ótimo exemplo desse reflexo na música.

Having the mark of a Nazarine.
That’s because he’s a Rasta Man
He carries a prophetical message.
That’s because he’s a Rasta Man
Borning out of time and out of age.
That’s because he’s a Rasta Man

Visita de Haile Selassie a Jamaica, no dia 21 de Abril de 1966. Ficou conhecido como “Grounation Day” e é considerado um dia sagrado pelos Rastafáris.

Toda essa efervescência estava inserida no contexto da Guerra Fria. As disputas políticas entre o PNP (Partido Nacional Popular), acusado de comunismo pelo partido opositor, o JLP (Partido Trabalhista Jamaicano), se intensificavam cada vez mais, provocando uma onda de violência generalizada pela ilha. O primeiro ministro Michael Manley, para tentar manter sua base de apoio, evocava a cultura Rastafári e a figura de Marcus Garvey em seus discursos, se apropriando do seu símbolo de união, inflando a população, os incentivando a lutar pelos seus direitos. Dessa forma, a música reflete a caótica situação vivida no país, que ansiava por um futuro pacifico guiado pelas forças de Jah contra o mal da Babilônia.

O Reggae, o Pan-africanismo e o Rastafári surgem como uma nova identidade deste povo desterrado durante o processo de escravização. Fruto de um ambiente social único, de uma simbiose de elementos pensados, repensados e adaptados para uma nova realidade. Longe de sua origem, os descendentes de escravos reencontram suas raízes na música, nas ideias pan-africanistas e na fé Rastafári. Uma busca pela sua origem, a África.

Interpretado como um som de busca não apenas pelos direitos sociais, mas de busca pelas raízes africanas. Seu respaldo na população foi gigantesco, pois enxergavam nas músicas desejos e sentimentos de união, tristeza e alegria. Um modo de escapar da violência cotidiana e se divertir por alguns minutos; uma oportunidade de ascensão social ou um meio de fazer suas reivindicações serem ouvidas. Possibilidades é o que não falta. A única certeza é a pluralidade das ideias tratadas no Reggae e suas várias formas de reflexão.

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