Da Grécia ao Brooklyn

A mitologia de Ka

spicy boogie, o mr. lova lova
300 Noise
7 min readMay 26, 2020

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Animoss e Ka

O Hermit And The Recluse é fruto da parceria entre o rapper Ka, que apesar do debut tardio em 2008, está rimando pelo Brooklyn desde meados dos anos 90, e do produtor Animoss, famoso pelos seus trabalhos com Roc Marciano.

O projeto da sequência ao que Ka vem fazendo durante seus últimos álbuns, relacionado ideias e conceitos com aspectos da sua personalidade e experiências de vida. E nisso ele vem se mostrando cada vez mais criativo, buscando coisas que podem se mostrar num primeiro momento desconexas, mas dentro das rimas, as inter linearidades entre os temas e questões relativas à sua pessoa tornam sua arte um meio de ressignificação e reflexão.

Por exemplo, no álbum The Night’s Gambit, o eu lírico abstrato de Ka usa o xadrez como metáfora para torna-lo algo além dos significados habituais do próprio jogo. Seja se comparando a um exímio jogador ou buscando similaridades entre suas decisões a jogadas e estratégias. A arte de Ka passa longe de ser um trabalho raso em reflexões, por conta disso, é necessário submergir em sua poética rítmica e se deixar prender pelas batidas hipnóticas e minimalistas.

Em Orpheus vs. The Sirens, lançado em 2018, a mitologia grega é o guia temático da obra. Como evidenciado no título do play, as histórias de Orfeu serão um dos pilares para a construção das músicas. Uma sobre sua jornada sendo um dos Argonautas, os cinquenta homens responsáveis por recuperar o velo de ouro (lã de ouro de um carneiro). Agraciado pelo talento musical, Orfeu usa o som de sua lira para resolver adversidades durante a aventura, seja acalmando brigas, cadenciando os remadores ou salvando sua tripulação dos cantos das sereias.

A outra, um pouco mais famosa, conta a trágica história da sua tentativa de trazer sua amada Eurídice de volta a vida. Orfeu vai até o mundo dos mortos tentar convencer Hades a deixa-la voltar a vida. Ele concorda, mas com uma condição, Orfeu deveria percorrer todo submundo, até a superfície, em frente a Eurídice, sem poder olhar para trás. Durante a volta, já próximo da chegada, tomado pelos sentimentos de angústia e preocupação, o poeta grego lança seu olhar para detrás de seus ombros e Eurídice desaparece para sempre.

No decorrer do álbum, é possível perceber Ka se projetando no “Orfeu argonauta”, aquele cujo tem o dom da música, pronto para ajudar seus companheiros, como também no “Orfeu amante”, que olha para seu passado, marcado por traumas, tentando entender e lidar com esses sentimentos.

O primeiro som, “Sirens”, já estabelece o tom da experiência, ouvimos um sample do filme “Jasão e o Velo de Ouro” (1963), que dá vida justamente ao conto dos Argonautas, o trecho é uma fala da conversa entre Orfeu e Jasão, responsável por juntar os tripulantes para a missão.

Jasão: To face the sea without knowledge or skill brings only death.

Orfeu: Of death I am knowledgeable/Danger I do not fear and I can give you music/Music that will tame wild beasts, lift men’s hearts to heaven

A música é repleta de referências aos mitos gregos e analogias com a realidade brutal de Brownsville, no Brooklyn.

I think it’s fine to relinquish mine for the life of our seeds
From weak moves these dudes eat your food like harpies
Not just car thieves, large pleas, came home hardened murderers
By the death toll, would’ve thought the threshold was guarded by Cerberus

O paralelo entre pessoas comendo sua comida como harpias, criaturas conhecidas por roubar os alimentos das suas vítimas, e roubo de carros, assassinatos, mortes, fazem sua realidade parecer o submundo de Hades, que é guardado por seu cachorro de três cabeças, Cérbero.

Should discover y’all brothers instead of throwin’ signs that divide you
It ain’t never shoot you, just headed to you with nines
It’s the Hydra

A violência gerada pela divisão de gangues, o ódio e rivalidade entre os próprios membros da comunidade, são iguais a Hidra, uma serpente com várias cabeças, toda vez que uma é cortada, nascem duas no lugar. As mortes decorrentes das brigas entre si mesmos funcionam da mesma forma, sempre vão estar se multiplicando

Being deprived of the papes made a lot of mistakes in my era
Hard life course you needed white horse to defeat the Chimera

No conto grego, Belerofonte, foi o guerreiro responsável por derrotar a Quimera, junto de seu cavalo alado, Pégaso. Ka faz um paralelo onde é necessário um cavalo branco, muito provavelmente uma referência a cocaína ou heroína, para derrotar a Quimera, um monstro com a aparência híbrida, um mix de vários animais juntos, o qual pode ser a representação de vários desejos, anseios ou sonhos do rapper.

Belerofonte, Pégaso e a Chimera. Peter Paul Rubens. 1635

Podemos ir mais além, se lembramos do final trágico de Belerofonte, ao tentar chegar no Olímpio montado em Pégaso, Zeus nada contente com sua audácia, manda uma vespa para picar o cavalo, causando a queda dos dois. Podemos pensar em como a droga pode levar a ações perigosas e resultar em grandes perdas para a vida da pessoa.

O instrumental de Animoss também é destaque. Atmosférico e hipnótico. Os arpejos de harpa nos remete diretamente a lira de Orfeu. A harmonia passa aquela sensação de suspensão, enquanto Ka despeja seus versos e cria, em nossa a cabeça, imagens com suas metáforas baseadas nos mitos gregos.

Till the roar of the silence, we at war with the tyrants
Blocks of outlaws, but all we watch out for is the Sirens

Durante esse verso, Ka usa do duplo sentido da palavra Sirens, que pode significar, sereias, criaturas místicas do mar, conhecidas por atrair marinheiros com seus cantos para depois mata-los, ou sirenes, no caso, as sirenes das viaturas da polícia. Enquanto um, estava no caminho de Orfeu, seduzindo seus amigos pelos cantos, o outro, em teoria, tem a premissa de proteger e servir aos cidadãos, quando na realidade, a população, principalmente negra, é enganada por esses falsos ideais, para no final serem traídos, presos e até mortos, apenas pela cor de sua pele.

Em “Fate”, as Moiras, três irmãs cegas (nem sempre representadas assim), responsáveis por tecer o fio da vida de todos os indivíduos, são usadas como um questionamento interno.

O eu-lírico coloca em cheque se todo seu esforço para sobreviver as ruínas do passado (podemos pensar nas ruinas gregas, como também nas próprias ruínas de Ka, de uma vida difícil, com muitos percalços) é mérito seu ou consequência da ação das Moiras

Survive ruins, was it my doing or fate
We made it through, we made it through, we made it through
Survive ruins, was it my doing or fate
Is this pre-scripted, or am I doing it great?

O paralelo de Ka com Orfeu fica claro no som, “Orpheus”. O poeta grego, ao olhar para trás, toma sua pior decisão e vê sua amada ser levada ao submundo para sempre. Na música, o olhar para trás tem outro significado, ele é usado para refletir sobre o passado, as angustias, dificuldades, decisões certas e erradas.

To raise a quarter played the corner, no better rook
Yes fella was bestseller before I read a book

Eurídice e Orfeu. Edward Poynter. 1862.

Como já mencionado, a mitologia grega é o guia temático. O rapper não se limita apenas ao mito de Orfeu, as metáforas bebem de diversas histórias. “Atlas”, é uma referência direta ao titã responsável por carregar a terra nas costas pela eternidade. O titã reflete as pressões da vida sobre ele, as responsabilidades sobre suas decisões.

Around the Atlas got respect
Weight of the world on my shoulders ain’t drop it yet
Got respect
Weight of the world on my shoulders ain’t drop it yet

Cada som é quase como um universo próprio, onde cada verso, cada referência possui um significado, às vezes, mais de um. Esse é o brilho de Orpheus vs. The Sirens, ele é polissêmico, assim como os mitos são. O mito tem um aspecto sagrado, é uma narrativa com objetivo de explicar o inexplicável. Sempre vinculados a valores considerados eternos da natureza humana.

Orpheus vs. The Sirens ressignifica esses valores, mas os mantém universais para boa parte da população que nasceu em lugares parecidos com o qual Ka cresceu, ou passou por momentos, decisões e dilemas iguais aos dele. A partir da mitologia grega, são criados novos mitos, com valores e histórias que talvez fossem inexplicáveis caso o rapper nunca as colocasse na ponta do lápis. Tornando o não vivencial de alguns, em algo vivencial. Tornando comum a realidade de muitos. Se antes a história europeia era supervalorizada e as crenças e ritos africanos ficavam sobrepujados, nesse contexto a apropriação dos mitos gregos tem uma dinâmica de resistência. Os transmuta em reflexões que possibilitem maior identificação e reflexão da nossa sociedade.

Na Teogonia, poema que conta a criação do mundo para os gregos, a história é genealógica, e não cronológica, ou seja, ela é contada a partir de gerações de deuses, que dão origem a próxima geração de filhos e assim por diante. Neste trabalho, as mazelas do escravismo, do racismo e da desigualdade também são genealógicas, são passadas de pai para filho, durante décadas, devido a cor da sua pele. Ka é um, entre tantos outros negros que vivem, de geração em geração, os problemas deixados pelo sistema racista, eugênico e escravocrata.

Essencialmente, o mito só existe se temos o homem. Nós construímos os mito e ele nos reconstrói. E é exatamente o que Ka e Animoss fazem nesse álbum. Do Brooklyn diretamente para Grécia Antiga.

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