O rock brasileiro e o unicórnio norte coreano

Vinicius Cabral
300 Noise
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4 min readSep 14, 2020
Não acredite em tudo que você lê
Não acredite em tudo que você lê

Em 1989 a saudosa revista Bizz lançava uma edição especial com um debate sobre o rock nacional. Já ao final de sua chamada "década de ouro"— ideia, por si só, altamente discutível — haviam sinais de estagnação e uma enorme insegurança com o futuro do gênero.

Revista Bizz de 1989

Mais de 30 anos depois olhamos para a bifurcação do "Vento do Leste"; o jovem tem certeza que o rock brasileiro morreu, enquanto recicla — sem saber — linguagens de fenômenos internacionais atuais(que por sua vez reciclam sistematicamente os anos 90). Os não tão jovens também têm certeza que o o rock brasileiro morreu. Afinal, já houve uma "era de ouro", e "no meu tempo era diferente". Os dois estão errados. Ao olhar para esse já histórico fascículo da Bizz, me parece bem razoável dizer que existe um rock brasileiro (que, por sinal, nunca morreu).

Nosso problema, como em quase todas as questões, é lidar pessimamente com nossa própria história.

Em depoimento ao especial da Bizz, Frejat, da Barão Vermelho (que eu nem gosto, diga-se), aponta uma reflexão absurdamente lúcida: "É essencial que não toquem apenas a última novidade (…) porque o rock nunca teve uma característica de originalidade — ele é calcado na reciclagem de coisas. O que falta no rádio é isso — história. É a base de tudo. Até para odiarem o Led Zeppelin e fazerem surgir o punk".

Interessantíssimo pensar nesse quote por dois aspectos. Primeiro pra cair a ficha de que o rock é, de fato, calcado na reciclagem. E é assim desde sempre; pensemos, por exemplo, nos Beatles, que estavam basicamente reciclando os desbravadores originais negros estadunidenses e criando com isso toda uma cultura de reciclagem que iria promover sucessivos "reboots" na cultura jovem a partir dos anos 60. Segundo, porque Frejat reinvindica, para a realização destas reciclagens, um conhecimento histórico que, àquela época (final dos anos 80), ia sendo destruído pelo rádio. Que diremos dos nossos tempos, onde "verdade" e "história" são apenas conteúdos a serem produzidos diante de um cenário de destruição do conhecimento, da história e do(s) sentido(s).

E de destruição qualquer brasileiro entende muito bem.

A chamada "pós-verdade", inclusive, é um conceito muito caro ao nosso contexto. Afinal, incinerar o passado é fundamental para impedir com que lidemos com nossos traumas — o que automaticamente parece servir para validar e "justificar" as tragédias do presente.

E é aí que este fenômeno tão ardiloso nos coloca em uma situação complicada. Porque hoje é possível, por exemplo, minimizar até os sucessos comerciais do nosso rock com análises enviesadas de métricas de vendas de álbuns. Dizer que o Brasil nunca fez rock "direito", ou que não nos é uma linguagem própria parece ser uma questão de crença, supostamente validada por informações analisadas sem um contexto adequado. Nesse sentido podemos mexer com os dados, simplesmente, para confirmar ideias pré concebidas.

Eu por exemplo poderia dizer que o rock é, na verdade, o gênero mais popular do país. Afinal, o maior vendedor de discos de nossa história — aquele tal de Roberto Carlos — veio do cenário da Jovem Guarda, fenômeno de massa indiscutível que arrebatou o país na primeira metade dos anos 60 com canções de… rock.

Mas eu sei, você sabe, e minha falecida avó (fã número 1 do romântico preferido do país) também sabe, que seria desonesto defender tal tese.

No que eu chego à derradeira conclusão de Frejat em sua fala: “Quem ouvia Raul Seixas e Mutantes na época deve estar hoje ouvindo Simone, porque não se recicla, não se recolocam essas coisas”.

Exatamente.

Quem embalou a Jovem Guarda acabou carregando por décadas Reginaldo Rossi, Agnaldo Rayol, Diana, Odair José. Não que essa turma seja desprezível (muito pelo contrário!). São artistas que representam uma variação tão incrível de um tipo de rock, que merecem todo o destaque que tiveram- e seguem tendo.

A questão agora é outra. Mais do que defender essa ou aquela corrente musical, trata-se de lutar pela defesa dos fatos e da história. Antes de dizer que não temos rock, ou que o coitado morreu, seria minimamente racional fazer uma revisão crítica do gênero no nosso contexto, sob as nossas condições.

Eu hoje noto que várias concepções que alimentamos desde sempre (como a ideia de que os anos 80 são a grande década do "rock nacional") simplesmente não sobrevivem a um escrutínio histórico ou a, como eu sugiro, uma revisão crítica. E eu imagino que, para termos alguma chance de garantir ainda um futuro para este país (em diversos sentidos), teremos que reescrever nossa história sob uma ótica hiper crítica, cuidadosa e revisionista.

O unicórnio de Kim Jong Un explica a cegueira da nossa crítica musical

Afinal, se aprendemos — ou queremos aprender — algo com a “pós verdade” é que, assim como a história dos unicórnios na Coreia do Norte, uma coisa não passa a ser real só porque queremos que seja.

É preciso redescobrir minimamente nosso rock, antes de querer matá-lo.

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Vinicius Cabral
300 Noise

Músico e roteirista. Sócio da Cocriativa, barulhista no duo The Innernettes e na banda godofredo, e colaborador do podcast Silêncio no Estúdio.