O surrealismo esquizofrênico em De-loused in the Comatorium

A pintura musical de um coma por overdose

Felipe Alves
300 Noise
8 min readJun 23, 2020

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Em 2003, a banda de El Passo, The Mars Volta, lançava seu primeiro álbum, mas os músicos do projeto já estavam sendo muito comentados naquela altura do campeonato, depois do fim de seu projeto anterior, At the Drive-in, justamente no ponto mais alto da carreira. Cedric Bixler-Zavalla e Omar Rodríguez-Lopéz decidiram viajar para outro cenário e beber de outras fontes para fazer música.

Após lançar uma pequena Demo/EP em 2002 chamada Tremulant, o grupo fixou uma formação e, com ajuda de alguns amigos (leia-se Flea e John Frusciante), começaram a gravar o que o mundo viria a conhecer como De-loused in the Comatorium. O álbum teve a assinatura de Rick Rubin na produção e Storm Thorgerson (o cara que fez a capa do Dark Side of the Moon e outros grandes álbuns do Pink Floyd) no projeto gráfico. Mas não é só o nome de Storm Thorgerson que importa quando traçamos um paralelo entre The Mars Volta e a arte.

Capa — Octahedron (por Jeff Jordan).

Cedric e Omar possuem uma forte ligação com o surrealismo, tanto em sua vida pessoal, quanto nas suas inspirações de composição. Assumidamente fãs do movimento artístico, as influências vão de tatuagens até homenagens dentro dos próprios trabalhos.

Capa, Frances the Mute
Lovers, Rene Magritte

De-loused In the Comatorium surge como uma experiência não convencional de audição. Muito além de ser um álbum conceitual, ele é um fragmento de uma experiência não ficcional que desenvolve seu próprio mundo, com suas próprias regras, e transborda sensações, explora distâncias, formas e trama enigmas na mente do ouvinte.

O nome por trás da construção do álbum é o de Julio Venegas.

Julio foi um artista, poeta, músico, pintor e aspirante a uma vida de extremidades. Essa figura emblemática, que dividia uma amizade com Cedric e Omar, teve um final de vida turbulento. Julio tentou suicídio injetando veneno de rato e morfina pelas veias e acabou em coma. Pouco tempo depois de acordar, cometeu suicídio ao se atirar de um viaduto, em 1996. O retorno ao Coma, o retorno a toda a viagem em que sua arte e sua realidade não encontram limites e que suas conexões não encontram um início ou um fim.

On an opaque afternoon, fending for himself, in the wake of a mistake, Cerpin was caught on guard in the line of quarrelling fire. A closed can of inebriation had found its way between his own crosshairs striking him in the cranium. A class of migraine unto itself. Maybe he had asked for it? Maybe it was the excuse he needed to traverse the borderland of clairaudient dwellings. Through aneurysm vespers, in the cabinet were the means. To smithereens of an aching argument, he left the point of impact, yeah he left it for broke to medicate his wounds. Maybe he had made a mistake, but mistakes are what his dreams were made of. *

Capa — Inertiatic ESP

De-loused in the Comatorium narra o coma de Cerpin-Taxt (Julio Venegas) em forma de jornada dentro do subconsciente. Cerpin-Taxt chega ao Comatorium (mundo dos sonhos em que ele está preso após a overdose) e se defronta com os Tremulants , criaturas que instigam sua imaginação e são responsáveis pelas suas criações artísticas, sua inspiração. Os Tremulants, em uma caverna na região de Rezjua, se reúnem para a decisão do próximo líder da house of Tremula Metacarpi. Cerpin é o escolhido.

Son Et Lumiere é a canção que abre o disco, discorrendo sobre as últimas lembranças da vida antes do coma e momentos antes de entrar em sua ESP (Ectopic Shapeshifting Penance propulsion), a cápsula, descrita mais como um embrião, uma placenta, que o transporta para o Comatorium. Cápsula esta que aparece nomeando a segunda música do álbum, Inertiatic ESP.

Desvendar todos os segredos e acontecimentos da viagem pelo Comatorium não é uma tarefa simples, porque tudo é mostrado ao ouvinte como uma parte de uma alucinação, como se a pessoa que estivesse nos contando não tivesse discernimento do que fala. É a própria viagem da droga que nos atinge pelas músicas. Não há limite para as letras. Cedric, ao escrever o álbum, utilizou uma escrita surrealista e recheada de neologismos e codificou acontecimentos absurdistas em poucas sentenças.

“What of this mongrel architect

A broken arm of sewers set

Past present and future tense

Clip side of the pink eyed fountain”

A escrita de Cedric possui certa familiaridade com o movimento beat de poesia e literatura, em especial com os escritos de William Burroughs. E busca unir o sonho ao real e quebrar as barreiras que separam estas duas realidades, tal como um agente psicoativo.

No mundo do Comatorium, tudo existe: um cemitério de submarinos (drunkship of Lanterns[1]), um doutor que faz uma cirurgia de sexo (Eriatarka[2]) e transforma Cerpin Text em um pterossauro-humanoide-trans chamada Clavietika Tres Ojos. Nesta altura da aventura de Cerpin Taxt pelo comatorium, após a cirurgia, a criatura Clavietika, também chamada por Moatilliatta[3], é solta em uma região de deserto chamada Sowietna (analogia para a palavra Soviética). Dentro desta instância do Comatorium (Cicatriz ESP) há uma disputa entre dois líderes opostos que costumavam ser aliados, Ojeno Valaso e Recherche Bellicose (configurando Stalin e Trotsky). Mas como realidade e fantasia não compreendem barreiras, Cicatriz não trata apenas do híbrido entre dinossauro e homem, mas também de uma fúria contra aquele que Cedric e Omar enxergam como culpado pela morte de Julio Venegas[4], Ben Rodríguez, companheiro de banda do At the Drive-In entre 96 e 97.

“Something told us that this Clavietika was the mother hechicera. The one that sheltered Ojeno Valaso…fallen ceraphim and creator divine of the opposing side. His design was almost flawless.” — Cedric, no livro do álbum.

No despertar do coma, a música Televators reflete a trajetória final de Cerpin Taxt para o final de sua vida, no suicídio que o serve como ponte de conexão entre mundo real e fantasia de seu subconsciente (take the veil Cerpin Taxt!). O fim de Cerpin Taxt não é no asfalto, embora ele seja constantemente reforçado durante as duas últimas canções do álbum. O suicídio é uma conexão para o Comatorium. O disco, em sua versão japonesa, possui uma faixa bônus chamada Ambuletz, que narra a volta de Cerpin Taxt para o mundo ideal onde se conecta com sua própria inspiração. “Não acabou até que os Tremulants cantem”. Nesta música eles cantam “Oh lord, you’ve made it!”.

“You must have been phlegmatic in stature
The gates of Thanos are a spread eagle wide
You let the shutters make sackcloth and ashes
Out of a blind mans picaresque heart”

“It’s not over till the tremulant sings
These ides of march, are they so make believe?
How tempts the revenant
Slice up and not across”

Não existe um ponto de impacto para o álbum, tudo se conecta e se subtrai através de uma atmosfera caótica que se derrete e se recompõe quase que instantaneamente. Nesse mar de loucura e alucinação, tudo é uma junção de partes em um todo que funciona sobre sua própria lógica.

Forsaken, depraved and wrought with fear

Who turned it off?

The last thing I remember now

Who brought me here?

The Mars Volta Tarsier por Christopher Sytsma

Rick Rubin não entregou um trabalho satisfatório aos olhos da banda e acabou cortando muito material que poderia estar no disco. Um reflexo que poderia apontar os cortes que o produtor fez no álbum é uma observação de seu sucessor: Frances the Mute, com sua grande duração e conteúdo transitório de ambiência.

De-loused in the Comatorium foi um álbum que dividiu águas no cenário do rock progressivo e colocou o estilo em uma nova direção, transformando elementos e ambições que ficaram marcados nos pontos altos do estilo com a viagem lisérgica de Syd Barret no Pink Floyd ou a grandiosidade de In the Court of the Crimson King, décadas atrás. Acima de tudo, o trabalho reflete uma transformação linguística e imagética dentro da música, trabalhando com elementos da arte de uma forma singular e pretensiosa.

*(Este texto usou de base o livro De-loused in the Comatorium escrito por Cedric e lançado como complemento ao álbum, além de informações discutidas do fórum Comatorium. O texto não pretende transcrever toda a história presente no álbum e nem decodificar todo o conceito inserido no disco). Você pode acessar o livro neste link.

[1] “Nobody is heard

Compass wilting in the wind

(kcab nrut t’nod, kcab nrut t’nod, kcab nrut t’nod)

Nobody is heard

Rowing sheep smile for the dead

Trans-oceanic depths in this earth

In this cenotaph”

[2] Eriatarka House of Facial and Muscular Corrections. Escritório de estética do Dr. Wolfram Tarant que faz um tratamento aplicando a saliva e cortando a carne com suas mãos que são cabeças de cães.

[3] Moatilliatta aparece nas letras de ‘This Apparatus Must Be Unearthed’ dentro da aventura final de Cerpin-Taxt dentro do Comatorium, em outra cidade do deserto chamada Topiltzen, onde Clavietika (Cerpin transformado) é levada e se envolve em um conflito com um líder local que sacrifica crianças para comê-las. Moatilliatta morre e vira cinzas ao final desse episódio, retomando a consciência de quem realmente é.

[4] “will drag your halo through the mud”

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Felipe Alves
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Este perfil é uma obra ficcional e o autor não se responsabiliza pelo conteúdo postado. Criador da @300noise escritor e coordenador de um certo prêmio de música