Os anos 90 ainda não acabaram — e essa é uma excelente notícia

Vinicius Cabral
300 Noise
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5 min readNov 6, 2020
Eu acho que há. E vocês?

Em seu seminal "Realismo Capitalista", Mark Fisher cita, logo no primeiro capítulo, a "tragédia Kurt Cobain". Extremamente consciente de estar destinado a ser um clichê da indústria cultural, o artista expunha suas entranhas em público, em letra e apresentações, enquanto ia se auto destruindo privadamente, cumprindo o seu destino de rockstar torturado.

Para Fisher, ainda havia uma angústia real em Kurt. Angústia refletida na condição de estar aprisionado na inevitabilidade do destino capitalista, de se tornar uma mercadoria e se corromper. Em sua carta de suicídio Kurt confirma a auto consciência da tragédia: "é melhor queimar de vez do que se apagar aos poucos". O que Fisher e tantos outros tiraram da curta história do artista foi a conclusão de que, talvez, ele tenha sido de fato o último rockstar legítimo, realmente angustiado, revoltado e inquieto. Suas mensagens eram potentes, empáticas, transgressoras.

A verdade é que o Kurt era um baita dum Antifa (desenho original de seus sketchbooks)

Mas o capitalismo é um monstro tão ágil e corrosivo que seus agentes parecem entender que é muito mais fácil "comprar" a transgressão do que lutar contra ela. Por trás do enorme sucesso da banda de Seattle, estava um verdadeiro "caldo de cultura" efetivamente inovador e transgressor, que enquanto possibilitava que Nirvana tivesse uma penetração comercial ímpar, poderia ameaçar a lógica concentradora e alienante do status-quo capitalista. Transformar um de seus artistas mais fotogênicos e carismáticos em um ídolo era uma estratégia, pois, infalível. Aquietava as massas, enquanto silenciava as reais angústias e mensagens das quais Kurt era, simplesmente, um porta voz glorificado. Apenas pensem: quantos artistas e bandas permaneceram basicamente no ostracismo por causa do estrondoso sucesso do Nirvana? E quantas mensagens realmente perturbadoras de Kurt não viraram, apenas, photoshoots descolados?

Não é todo mundo que fica lindo assim com uma arma, não é mesmo?

A estratégia do sistema foi afinal, tão ágil neste caso, que funcionou como um escudo multiuso, criando um ceticismo e um cinismo único nos fãs e artistas que realmente sacavam as críticas de Kurt. "Se ele é tão popular assim, se está em todas as capas de revistas e na televisão o tempo todo, então quão transgressoras suas mensagens realmente são?" — se perguntaria qualquer um que, como eu, desconfiasse do sucesso estrondoso do cantor. Seguindo essa linha do tempo, Fisher conclui, basicamente, que a partir dessa história do Kurt tudo se dissolve no cinismo da pós-modernidade.

O que, pensando bem, talvez não seja necessariamente o caso.

Na verdade, é só uma década depois do lançamento de Nevermind (no mítico 1991 — "The Year Punk Broke") que as coisas começam a soar, realmente, pastiches completos. Basta lembrar da banda "vendida" pela mídia especializada como "a salvação do rock". Se hoje os The Strokes parecem fazer covers desidratados deles mesmos, em 2001 pareciam fazer covers desidratados de T-Rex, Television, The Velvet Undergroud, Gang of Four e tantas outras bandas do punk, do pós-punk e, claro, do indie noventista. Se formos falar do mainstream pop do início dos 00, a coisa ainda piora. Basta pensar que o que passa a virar fórmula de bolo com produtores como Timbaland e Max Martin, um dia foi algo vívido e imprevisível. Ou alguém aí se habilita a comparar Britney Spears, Backstreet Boys e Destiny’s Child com artistas como … Sade, Madonna, Prince, Outkast?

Este olhar em retrospecto para os anos 90, que tem sido muito frequente e (pra mim erroneamente) interpretado como mero fetiche nostálgico nos revela que, na verdade, havia muita inventividade e transgressão ali, como dizem os estadunidenses, "hiding in plain sight". Bem na nossa cara (transformados em produtos instantâneos), artistas, bandas, filmes, videoartistas, e tantos outros movimentos orgânicos e legítimos eram categorizados como "pós-modernos" e literalmente vendidos como um exotismo comercial da "cultura alternativa", que passava a ser cool.

Vejam hoje, por exemplo, os clipes da Björk com o Michel Gondry (Hyperballad, Army of Me e tantos outros), que juntos desenvolveram uma estética tão à frente de seu tempo que pode ser, sem sobressaltos, considerada precursora de muita coisa que consideramos nova hoje: Arca, PC Music, Sophie, e por aí vai.

Carai, Björk…

E esse é só um exemplo. Ao tornar tanta efervescência em mercadoria, a indústria cultural conseguiu, efetivamente, silenciar a transgressão. Não esqueçamos, nunca, que PJ Harvey, conscientemente ou não, já defendia o gender neutral em 1993. O próprio Kurt, grande personagem desse texto, era um crítico da cultura do estupro, e defendia uma conscientização masculina a respeito do assunto (afinal, quem estupra é o homem). Sua esposa (que em felizes revisionismos vem sendo apontada por gente como eu como sendo mais talentosa e importante ainda do que o marido) também botou a boca no trombone: contra o sexismo na indústria, contra os (tantos) abusos que sofria dentro e fora dos palcos, contra — totalmente contra- o patriarcado heteronormativo, e por aí vai (ouçam Live Throug This do Hole, um dos álbuns ainda muito subestimados da década de 90).

No rap, nossos Racionais gritavam as desigualdades que até hoje vem sendo revisitadas por rappers da envergadura de Dexter, Djonga e Coruja. Na gringa, Nas, Biggie e Shakur, faziam a cabeça de caras que, como o Kendrick, precisaram beber daquela fonte para atualizar a tradição do rap e levá-la passos à frente. Se formos revisitar absolutamente todas as invenções dos anos 90 ficaremos mais algumas décadas investigando.

O que pode ser um exercício revelador.

Do indie rock estadunidense ao latino americano, passando pelo hip hop, pelo cinema e, até mesmo, pela MTV, o que continuaremos descobrindo, por trás dos "sucessos" comerciais, é uma cultura densa, transgressora e inovadora, que agregou experiências de todas as décadas anteriores na tentativa de escapar do que, uma década depois, pareceu ser realmente inevitável: a degradação e massificação extrema das identidades mais criativas que vinham do underground.

Pra encerrar, deixo mais um exemplo flagrante das incursões ousadas noventistas. Aqui do lado, em 1992 na Argentina, o Soda Stereo, simplesmente a maior banda de rock em espanhol àquela altura (sim, isso é, puramente, um fato … podem se impressionar com esses números, é normal!) lançava Dynamo, um disco altamente imerso no que de mais moderno o rock alternativo produzia, em "tempo real"- shoegaze, madchester, camadas sônicas com beats eletrônicos e samplers, etc. Uma banda que resolveu, no auge da fama, experimentar no estúdio e nos trazer uma obra-prima que, fora do contexto latino-americano (o que infelizmente inclui o Brasil, tá, pessoal?) é pouquíssimo acessada. Deixo aqui só a pontinha do iceberg:

Uma das bandas mais famosas da história do rock em espanhol, chutando o balde

Os anos 90 ainda não acabaram. Isso porque, simplesmente, a indústria mascarou tudo aquilo que tantos artistas geniais queriam nos contar, jogando suas criações em nossas caras, com luzes fluorescentes e cores chamativas. Às vezes o que está na superfície é só uma distração. Já devíamos ter consciência disso a essa altura do campeonato.

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Vinicius Cabral
300 Noise

Músico e roteirista. Sócio da Cocriativa, barulhista no duo The Innernettes e na banda godofredo, e colaborador do podcast Silêncio no Estúdio.