Sobre Bolsonaros, Pinochets e Como Asesinar a Felipes

MF vao (Leria)
300 Noise
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5 min readMar 24, 2021

2020 foi um dos anos mais importantes para a história recente do Chile, e consequentemente para a história da América do Sul.

Para quem não acompanhou os enormes protestos que tomaram as grandes cidades chilenas desde 2019, marcados pela enorme violação dos direitos humanos (1) e cenas de batalhas campais entre tropas militarizadas da polícia e uma multidão cada vez maior e mais organizada de manifestantes, apesar de o Chile ser um regime democrático já há mais de 30 anos ele ainda se encontrar sobre a regência da constituição aprovada durante o período de ditadura neoliberal encabeçada por Pinochet.

Essa constituição é um marco não só na vida dos chilenos como para história do neoliberalismo, sendo fruto do acordo macabro entre os neoliberais chicago boys — dos quais eu gostaria de destacar o Paulo Guedes (2) — e a ditadura brutal de Augusto Pinochet. No contexto da história da América Latina e ainda tomando toda a dinâmica do capitalismo nos momentos finais da segunda guerra mundial, essa constituição fez do Estado chileno um modelo inaugural dessa nova forma de (anti) governo que rapidamente se espalhou pelo mundo: o desmonte das infraestruturas públicas em nome de uma privatização supostamente salvadora.

Na prática ela afeta a vida dos chilenos em dois pontos fundamentais: na autonomia do Estado sob a economia nacional, impossibilitando qualquer política que contraria os acordos de livre comércio firmados pelo chile, e na privatização dos direitos básicos dos cidadãos, com o Estado deixando de se responsabilizar por serviços básicos como educação, saúde e até mesmo a previdência social (3).

Como mostram os vídeos e os relatos dos quase 500 manifestantes que perderam parcial ou totalmente a visão com a repressão militar contra a população, o caminho até agora não foi fácil mas rendeu algumas vitórias. Em outubro do ano passado através de um plebiscito foi decidido que haverá uma Convenção Constituinte com 155 deputados e deputadas que terão até 2022 para apresentar uma nova constituição, que passará por um novo plebiscito para ser aprovada.

A situação certamente não é ideal, há um sério risco de a nova constituição não ser o suficiente nas enormes mudanças que a população exige, sem dizer a questão do Covid 19 e a administração neoliberal do empresário Sebastián Piñera com claras tendencias autoritárias. Contudo essa vitória representa um grande alívio nos mais de 30 anos de lutas sociais para reverter o criminoso neoliberalismo imposto após o fatídico 11 de setembro de 1973 com o golpe ao governo socialista de Salvador Allende.

O que parece definir melhor o momento atual é um novo dilema que se apresenta para os chilenos: qual é a constituição que eles necessitam? Quão radical são as mudanças que devem ser implementadas? Como fazer com que essas mudanças sejam estruturais e deem conta dos problemas que a política neoliberal criou?

Uma das respostas mais interessantes a esse dilema do país veio da banda de RAP / Jazz / Rock alternativo de Santiago chamada Como Asesinar a Felipes.

Com um nome que talvez deixe primeiros ouvintes confusos (4), CAF é um atentado a música bela, uma subversão do jazz que o baterista Felipe Metraca, o baixista Sebabajo e o tecladista Subcomandate Marcos aprenderam no conservatório Escuela Moderna de Música y Danza através do sample e do rap do MC Koala Contreras e do DJ Spacio.

A sonoridade única da banda, que por vezes lembra um boom bap clássico dos RAPs estadunidenses e em outros que lembram um jazz experimental, é acompanhada pelas líricas abstratas e revoltadas, numa mistura estranha, envolvente e que não para de se transformar.

Em seu último álbum MMXX, lançado dia 16 de outubro do ano passado, poucos dias antes do plebiscito sobre a nova constituição do dia 25, usa de uma sonoridade mais eletrônica, uma capa que simboliza bem o momento histórico pelo qual o Chile passa hoje em dia — com celulares filmando partes de um protesto — e uma profunda reflexão filosófica, numa defesa por mudanças estruturais a política e economia do país.

Talvez a música que melhor represente as ideias presentes no álbum seja “Ahora Es Cuando”, na qual o sentido da repetição da história é explorado em seus vários significados.

A sociedade chilena já passou por outros momentos críticos em sua história, seja com golpes ou em momentos de ampliação da libertação popular. A persistência na história pelas estruturas responsáveis pela realidade desigual que assola o Chile, e os países da América do Sul, sempre enfrenta a resistência do povo, daqueles que efetivamente produzem a sociedade, dos povos tradicionais que ocupavam o território antes da colonização entre tantos grupos que compõe as classes marginalizadas no capitalismo neoliberal. Isso faz com que resistir e avançar traga um encontro entre o passado e o futuro no presente, um movimento que parece já ter ocorrido e que projeta um futuro diferente, um momento ideal para ação.

Tal como na frase de Marx em Dezoito Brumário de Louis Bonaparte — a história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa — a música prega a necessidade de se agir agora para evitar que o acordo com o inimigo se torne novamente farsa, que não volte a empurrar o país de volta ao abismo e a barbárie, sendo “Ahora Es Cuando” uma afirmação, o agora é o momento.

MMXX representa um retrato complexo e crítico do atual momento histórico do Chile, uma das primeiras experiências neoliberais na América do Sul que agora chega ao seu fim, e uma longa construção musical da CAF. Sem dúvida alguma um dos materiais que contribuem para entendermos o momento no qual nos encontramos.

Caso voltarmos para situação do nosso país, governado por um fã declarado de Pinochet e “casado” com um chicago boy, é possível traçar muitos paralelos entre nossa situação e o que se passa no Chile. Porém é fundamental não perder de vista que essas revoltas não surgem à toa, dependem de um longo caminho e muito trabalho para se alcançar o momento em que vitórias se mostrem possíveis.

Talvez mais do que tentar comparar situações muito diversas, como é o caso do Brasil e do Chile, deveríamos buscar entender os dilemas que percorrem nosso país atualmente: como criar uma coalizão política no campo da esquerda para derrotar o fascismo neoliberal representado por Bolsonaro? O Lulismo ainda é um projeto viável? E também, ao ouvir MMXX da CAF, qual o papel da música e da arte na crise em que vivemos? Quais são os álbuns que representam o momento histórico em que vivemos?

  1. https://www.brasildefato.com.br/2020/03/17/repressao-de-pinera-contra-protestos-ja-causou-mais-de-450-lesoes-oculares
  2. https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/30/politica/1540925012_110097.html
  3. https://www.brasildefato.com.br/2020/10/26/por-que-80-chilenos-querem-uma-nova-constituicao
  4. O nome da banda vem de uma brincadeira interna dos integrantes. Sendo originalmente chamada de “Los Felipes”, por conta do baterista Felipe Metraca que aproximou os outros integrantes, o projeto acabou literalmente matando o nome e assumindo a alcunha de “Como Asesinar a Felipes”. Fonte: http://www.disorder.cl/2008/05/12/como-asesinar-a-felipes-%E2%80%9Cse-trata-de-matar-a-la-musica-linda%E2%80%9D/

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