Um cadáver pega fogo no Brasil

MF vao (Leria)
300 Noise
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4 min readFeb 10, 2021

“Cadáver pega fogo durante velório” não é uma manchete de jornal que você vê todos os dias. As palavras que estampam o encarte do álbum lançado em 1983 pela gravadora Ventre de Raio não foram vistas por muitos; com divulgação fraca e a censura da Ditadura Militar (1964–1985), o clássico “Cadáver Pega Fogo Durante o Velório” do sambista carioca Fernando Pellon é um daqueles monumentos escondidos da história da música brasileira que foram recentemente redescobertos.

O apelo ultrapassa a arte da capa e já se mostra como reflexão: ali está escancarada uma sátira aos saudosos periódicos hiperpopulares — “espreme que sai sangue” — tão vitais para o sensacionalismo forjado nas entranhas da época da ditadura. De maneira inteligente, os membros do grupo são apresentados e se enfrenta, logo de cara, o que tudo isso quer dizer.

A mensagem de Tárik de Souza deixa bem explícita a ideia do álbum: fazer o que a música popular brasileira em seu segmento mais burocrático já há muito não fazia, ou seja, dar voz a violência e drama brasileiro, para ser uma marca do seu tempo histórico, ser algo maior do que uma mensagem passível de ser vendida.
E como se promessa fosse divida, o álbum está distante da discussão explícita sobre “O que é a violência?” ou qualquer mesa de debates do mundo acadêmico. É dentro do próprio sensacionalismo narrado pelos “Notícias Populares” que ele constrói narrativas em um tom absurdo e realista, discutindo um tema maior através do desenrolar de uma tragédia, sem perder de vista os detalhes da história e o que há de mais característico no samba do que é um samba.
O instrumental alegre e dançante da faixa que abre o álbum, “Porta Fora”, brinca justamente com a tragédia: trata-se da história de um homem que, após ser diagnosticado com câncer, procura sua ex-amante para poder lhe passar seu seguro de vida. Ele não a encontra; ela era uma prostituta e, como boa criminosa, passou a usar outros nomes falsos.
De que adianta a pensão alimentícia se ele não acha Letícia sem chamar a polícia? Ah, a ironia
O álbum desenha esses cenários em que as mais terríveis cenas ocorrem, mas não as relata na terceira pessoa, como a redação de um jornal. As músicas são um relato pessoal, no qual a moral pública acaba sendo deformada e relativizada. A prosa cotidiana de Paulinho da Viola, João Nogueira vai encontrando os dramas absurdos de um “Notícias Populares”.

Na terceira música por exemplo, “Com Todas as Letras”, o próprio Fernando Pellon canta os pensamentos de um suicida enquanto este toma veneno e sai andando pela cidade. Um relato com claras referências a ditadura militar e ao sentimento de ausência completa de futuro possível, mas que também se refere ao cotidiano acelerado e desgastante no qual sobra pouco tempo para que as pessoas também alcancem suas vontades, seus desejos, um sentido para as suas liberdades.

Em suas entrelinhas, Cadáver Pega Fogo Durante o Velório faz um movimento interessante, pegando duas coisas que são marcas importantes da vida do brasileiro, o samba e a tragédia espetacular. E, no meio dessa dança, expõe a ironia da vida no Brasil ao final da ditadura.

Até por que o que faz de alguma obra parte da cultura popular brasileira? O que nos define enquanto um povo? O que dá a coesão social para que nós, brasileiros, nos entendamos como parte de uma mesma coletividade?

Essa pergunta obviamente tem muitas respostas, mas para o contexto do álbum de Fernando Pellon, ela acaba se resumindo a esses dois fatores: por um lado a representação da nossa linguagem e do nosso jeito de ser, irônico, triste e alegre ao mesmo tempo, como também o espetáculo da barbárie em que nos encontramos, de uma vida repleta de dilemas e tragédias que apesar de não serem exatamente o cotidiano acabam representando um fato amplamente reconhecido.

Como trás o próprio título “Cadáver Pega Fogo Durante o Velório”, o álbum traz esse espetáculo mórbido com um tempero especificamente brasileiro.

A redescoberta do álbum nas redes sociais nos relembra de por que ele ainda é atual, tratando de temastemas que ainda são capazes de dialogar com a realidade atual, mas que não se limita a só isso.

O álbum faz um desvio fundamental, e ainda muito importante para a música brasileira, ao usar das situações cotidianas como um elemento que conduz a representação de uma situação complexa da vida, mas ao mesmo tempo prova que acabou por perder para a ala mais burocrática da MPB.

Sem dúvida alguma tem um cadáver pegando fogo no meio do Brasil aos olhos de todos, mas 38 anos depois da obra prima de Fernando Pellon, quem é que canta sobre o cadáver pegando fogo durante o fúnebre, trágico e festivo velório do brasil?

Fontes:

http://fernandopellon.com.br/biografia/

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